Atualização 184 - Minicontos de natal
BIOGRAFIA
VERDE, BRANCO E VERMELHO
Bia Lelles

Eu estou aqui sentada, batendo palmas ao som de uma tarantela, mais absorta em meus pensamentos do que atraída pela cadência da música. Crianças dançam no palco improvisado na quadra do colégio, comemoram o fim do ano. Os meus lá já subiram e dançaram e sorriram. E eu os aplaudi e sorri. Como deve ser.

Meus olhos secos observam tudo: os flashes dos pais-paparazzis, os passos de dança desencontrados, as roupas coloridas.

Um pai se levanta e sai, sob os protestos do filho, antes que a apresentação acabe. Uma garotinha quer cantar junto ao coral, mas a mãe tem compromissos mais urgentes. E eu me perco em pensamentos vazios.

Então me deparo com ele. As crianças cantam, mas não as ouço mais. Sua imagem doce hiptoniza meus sentidos. Torpor.

Estamos a três pais de distância: de pé, apoiado num encosto de cadeira, ele está boquiaberto diante do espetáculo que se desenrola a sua frente. Os olhos brilham a cada mudança de luz, a cada rodopio infantil sobre o palco.

Quantas coisas aqueles olhos já viram nessa vida? As rugas foram acumulando-se em torno deles, como sulcos em terra árida, e cada uma delas têm história triste para contar. Os cabelos foram-se há muito, restando uma penugem branca sem vida. As mãos embrutecidas agarram-se ao encosto, numa tentativa de manter em pé o corpo desobediente de quase um século.

Mas o brilho está lá. Nos olhos, irrigando a pele morta; no sorriso, ainda que de pérolas falsas; na aura de menino, que se expande e toma todo o lugar.

Quanta coisa há de ter visto esses olhos que ainda se encantam com uma dança desencontrada de crianças?

Quanta coisa será preciso passar por meus olhos para que eu me encante com a singela pureza desse alegre desencontro de crianças numa dança?

O show acabou. Acendem-se as luzes e posso ver o sorriso alegre voltado para mim.

As pérolas são verdadeiras.

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