NADA
DEMAIS
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Sharon
Ratis
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Outro
dia, atendi um telefonema: -
Alô. -
Filha ? É o papai. -
Desculpe, o senhor ligou errado. Daria minha existência para que este telefonema não fosse engano. Uma besteira que me persegue há semanas, até agora. E que dá um nó bem apertado no meio do meu sossego quando paro a fantasiar que podia ser verdade. -
Filha ? É o papai. -
Pai ? -
Espera, não desliga. -
Desculpe, o senhor ligou errado. Meu pai morreu quando eu era um bebê.
. -
Não. Liguei certo. Liguei para você, minha filha. Não
morri. Bem que tentaram. -
É você, papai ? - o coração aos pulos. -
Olha, você não precisa falar comigo, acho que nem tenho o
direito de ligar, mas vi teu nome na lista telefônica. -
É você mesmo, pai ? -
Escuta, não morri. Sumi para que não acontecesse nada pior
com sua mãe, com sua irmã e com você. -
Onde você está agora ? - encho um copo com uísque.
Sem gelo. -
Perto. Sempre estive perto o bastante para saber de vocês. -
E a anistia, pai ? Por que você não voltou depois da anistia
? -
Para não atrapalhar o trabalho que sua mãe fez. Para não
confundir sua cabeça adolescente. -
E me deixou crescer sem pai por isso ? -
Você teve uma figura paterna. Esteve sempre bem orientada. Se fez
besteiras, é porque é igual a mim. Sangue não é
água, minha filha. -
Diz de novo. -
O que ? -
Me chama de filha de novo. Eu nunca gostei que me chamassem assim. -
Minha filha. Minha super S. -
Eu li esse poema. -
Escrevi para você. -
Também escrevi um conto para você. -
Você escreve ? -
Não. Só umas besteiras. Não chego aos seus pés.
Fico querendo ser igual a você, mas sou só um rascunho. -
mais uísque. Acendo um cigarro. -
Você herdou o que eu e sua mãe temos de melhor. -
Não tenho a coragem de vocês. -
Mas tem a ousadia, a esperança, a mesma vontade de mudar o mundo. -
Se você soubesse o que tenho feito de minha vida! -
Eu sei. Você tem me procurado em todos os lugares que não
estou. Você gosta de tal música porque eu gosto. Gosta de
tal filme porque eu gosto. Escreve porque eu escrevo. -
Não sei mais o que sou eu ou o que é você. -
Sabe, sim. É só parar e pensar com calma nas coisas. -
Não é tão simples. Confundo tudo, misturo tudo, não
me lembro de nada. Esqueço de tudo, não consigo mais me
concentrar. Enjôo de tudo tão depressa! A coisa mais importante
do mundo hoje é esquecida ou trocada por outra amanhã. -
E ouve os outros dizerem que você não tem atenção,
que é relaxada, não é ? -
É. Mas não sou assim. São os outros que dramatizam.
Que se preocupam com besteirinhas. -
Também sei disso. O que você faz é continuar me procurando.
Não estou naquele que você quer para pai de seu filho. Aquele
é seu espelho. Podia ser seu companheiro, mas você é
tão mais do que ele, minha filha! -
Estas duas palavras se encaixam na tua voz, meu pai. -
Não me procure mais no corpo do outro. Ele nasceu no mesmo dia
que eu, seríamos bons amigos, mas somos pessoas distintas. E, sim:
vocês se conheceriam de qualquer jeito. Mas não seria como
é. O mais parecido comigo é aquele que ganhou o Nobel. Você
o viu duas vezes, lembra ? E você sempre soube disso. -
Quero encontrar você. Não me interessa o que aconteceu nestes
vinte e sete anos. - Então espere por mim hoje, ao pôr do sol. Naquela praça que tem o mesmo nome de um poeta do Romantismo. Estou esperando. Veja se não demora muito. |
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