A
CAVE DA CASA AMARELA
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João
Salvado
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Era um quarto pequeno que fechavas à chave por dentro, para assegurar que não seríamos surpreendidos pela curiosidade das crianças que dormiam dois andares acima. Lembro-me que havia brandos odores distribuidos pela casa: a frutas e chá, na cozinha; a gatos e ração, na garagem; ao teu perfume, na sala. À cave tinha sido atribuído um indulgente odor a mofo que lhe transmitia a serenidade própria dos espaços reconditos. Não era sequer necessário procurar no salitre da parede, ao fundo das escadas, a razão técnica para as infiltrações de humidade - o cheiro contava a história. Eu gostava de sentir a identidade olfactiva da tua casa. Transmitia uma riqueza construtiva, tão respeitável como a arquitectura dos espaços, da luz, e dos ambientes que a desenhavam. Havia uma cama, uma cómoda, um roupeiro e um aparelho de ginástica daqueles que se compram por primor atlético mas depois, raramente se usam. A cómoda era um volume inerte que ganhava vibração com as velas que lhe punhas em cima solenizando os momentos de entrega a que nos dedicávamos; o roupeiro, entreaberto, deixava entrever um alinhamento de camisas de homem, de colorido Façonable e tom desportivo, vestígios de um casamento recentemente rasgado, cujas sequelas transpareciam nos teus olhos mais do que no axadrezado conteúdo do armário. O nosso amor era também isso, uma celebração de corações partidos por outras dores. Ocorre-me a memória daquela noite. Faziamos amor ardente na cama estreita. O teu corpo por cima espetando-se deliberadamente no meu. A luz das velas definia o recorte da tua cara, da tua boca de lábios flacidamente entreabertos e olhar revirado, focado nas entranhas. Eu esvaía-me de prazer. Era tarde, de madrugada. E a volúpia das madrugadas parecia aumentar-te o desejo porque, sendo roubada ao sono, era mais valiosa. A ardência apoderara-se de nós e eu lembro-me de ter puxado as tuas ancas num aperto contra o meu sexo, e murmurado no teu ouvido um sussurro cutâneo com origem num arrepio que me subiu a espinha antes mesmo de se transformar em pensamento: - Amo-te, quero ter um filho teu! A
expressão, arrebatadora, haveria de me perseguir por muito tempo
ganhando afasia e peso de intriga. Teria sido apenas um arremesso verbal, motivado pela volúpia? Quantos homens e mulheres terão nascido fruto de semelhante pulsão criadora? Povos inteiros, certamente. E veio daí algum mal ao mundo? "Amo-te, quero ter um filho teu!" A beleza crua da estocada ecoa ainda em mim, como se as frases do amor e do sexo merecessem interpretação semântica. Passaram-se anos. Não fizemos nenhum filho. Eventualmente nunca o faremos. Será demasiado tarde no nosso ciclo biológico? Será desapropriado? Ainda assim ficou o momento, valeu a hipérbole... mesmo gerada num quarto de cave, fechados à chave. O amor constrói-se destes pequenos instantes. |
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