PEQUENAS
COISAS
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Cláudia
Cristina Guelfi Faga
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Eu, que tenho sofrido a angústia
Diante do crucifixo, pedia para agüentar, que era o único verbo que sabia direito toda a conjugação. E agüentava... A comida, que comeria fria, depois que a família tinha se saciado; os dias de chuva, no quartinho de empregada espremido; a cama de colchão mastigado, que fazia doer as costelas; o cobertor surrado e desfiado (Ah! Bom Deus, pelo menos tem cobertor!). Agüentava, sobretudo, o desprezo daqueles que têm uma família só para si e não leva em conta quem é de fora. Pequenos gestos, pequenas coisas. Um único alento que destoava de todo desconforto no seu quartinho era um baú que herdara de seu pai, lindamente pintado de azul e dourado, e que ficava ao lado da cabeceira da cama. Nele guardava alguns objetos de valor emocional, os quais revia de tempos em tempos. Mas era no escuro, na virada da noite para a madrugada, que Doralice tinha alguma compensação. Ela sonhava bons sonhos. Sonhava que passeava por um campo de verdes gramas, com árvores altas ao longe, um céu azul emoldurando a paisagem, e um fio de regato que fazia seu caminho até um abismo. Passeava ao longo do regato até alcançar a borda do precipício e não temia. Sabia que nada poderia atingi-la e nada afligia seu coração. E ficava passeando, dançando, aproximando-se cada vez mais da beira do abismo que a atraía e a fascinava. Doralice,
paraibana, de quarenta e cinco anos. Mulher rústica, sem modos
ou gosto refinados. Carregava um semblante de caatinga. Cabelos de arbusto
retorcido, olhos de pouca água, boca de cacto e nariz de galho
sem folhas. A expressão de seu rosto afastava. Era uma defesa.
Mas uma defesa tão fortemente armada que lhe rendeu solidão.
Sem marido, sem filhos, não adquiriu para si a liberdade de uma
vida que fosse só sua. E ficou, assim, presa, entregue à
benevolência da família. Os dois filhos lançaram-se em profissões menores, não as que a mãe almejara: para um sonhou a Medicina, para o outro a Advocacia, como costumavam sonhar as mães de família rica e aristocrática. Narcisa havia decorado os nomes das profissões dos filhos mas, achando que os outros não iam entender, só falava que os dois mexiam com computadores. Pelo menos era assim que Doralice passava à frente o que aprendera da irmã. Para a empregada da vizinha, falava: "Os meninos, meus sobrinhos? Ah! Eles mexem com computador!" Espremia os olhos, o nariz e a boca enquanto falava, que mal dava para discernir se o desenho que aquela face enrugada expressava era um total desprezo ou tamanho orgulho pela profissão dos meninos. Era a empregada da irmã. Doralice tinha que retribuir a moradia e o alimento que recebia de graça e, por isso, ela limpava, cozinhava, lavava, passava, enchia o filtro com água e tirava o lixo de casa. Doralice vivia a vida dos outros. Chorava a dor dos outros. Sorria a alegria dos outros. Estava acostumada. Como a mão que coleciona calos da dura labuta, Doralice estava acostumada aos pequenos gestos e pequenas coisas que colecionava ao longo da vida. Eram muitos, eram tantos! Às vezes, ela tirava do baú, ricamente pintado de desamor, os objetos amargos que ia acumulando dentro dele. Não que ela quisesse colecionar. Ela não tinha dom para ser colecionadora. Ela era rústica e ingênua, sem o verniz da aristocracia, mas de coração nobre e compassivo. Entretanto, os objetos despencavam direto no seu baú, para dentro de uma mágoa sem fundo. O primeiro objeto de que se lembrava foi um aniversário. Tinha o quê? Quatro, cinco anos? Ela queria ganhar uma boneca. Estava ansiosa. Tinha esperado tanto tempo! Alguém haveria de lhe dar uma boneca. Mas só teve roupas. A mãe, dona Rosalva, achava bastante justo e necessário ter roupas, pois elas eram muito caras na Paraíba. Espalhou a notícia pela família, que só deu roupas. Quem iria se importar com a vontade de uma menininha de quatro ou cinco anos? Gente tão pequena como era Doralice fica contente com qualquer coisa. Até com um pacote de biscoitos barato. Mas Doralice não ficou contente. Engoliu a seco o biscoito e a falta de boneca. Agüentou mastigando e engolindo a frustração. Não teve nenhuma boneca, não! Agradeceu as roupas à família-que-só-sabia-dar-roupas e sorriu. Depois foi brincar de amarelinha. Houve uma outra ocasião em que agüentou essas coisinhas, pequenas coisas, enfim. Que de tão pequenas nem valia a pena reclamar! Ia ser implicância de menina mimada. Ia ser como chorar de barriga cheia. Ia ser como um capricho de menina à toa. Então e mais uma vez, calou-se. Ah! Sim, essa foi a vez em que queria brincar com a prima Sissi. Tão querida prima, a Sissi. Ela era dois anos mais velha e dava preferência a uma outra prima, Nucrécia, que por sinal, era também dois anos mais velha que Sissi. É essa mania que as crianças têm de dar preferência aos primos que são dois anos mais velhos! Essas crianças! E Doralice esperava, com paciência, pela hora em que Sissi iria brincar de boneca com ela, na casinha de almofadas. Ficou ansiosa. Nucrécia, que apesar da pouca idade, era pérfida, não parava de solicitar a atenção de Sissi. Doralice partiu, então, para o protesto e reclamou. Como contragolpe, Nucrécia, a pérfida, a humilhou com nomes que costumam humilhar crianças. Chamou-a de boba, de tonta, de boba e outra vez de tonta. Doralice quis tanto bater na cara da Nucrécia, a pérfida, com sua mão, que naquela época ainda não era calejada. Mas não fez isso. Pelo contrário, como se fosse Jesus Cristo a perdoar os pecados do mundo, Doralice foi até Nucrécia e a beijou na face. Ah! Se arrependimento matasse! Agora Doralice estaria morta e dura e fria. Não brincou com Sissi. Não brincou com mais ninguém. Ficou no meio da saia da mãe, até as duas voltarem para casa. Até hoje Doralice hasteia a mão e a tremula como se estivesse esbofeteando a face pérfida de Nucrécia. Certas coisas uma criança nunca esquece. Certos objetos no baú da memória nunca envelhecem. Doralice cansou de recordar e adormeceu. Teve sua compensação. Sonhou que bailava no gramado verde, cheio de árvores frondosas. Corria e andava às margens de um abismo profundo. Deitou-se na grama e abriu os braços recebendo o Sol que a inundava, como se ele fosse um príncipe, e ela, a princesa que ficou encantada ao ser beijada por tão nobre Astro e tão suave boca. Mesmo estando à beira do precipício, Doralice estava feliz e não tinha medo. Mas ao acordar, a distância entre o sonho e a realidade colocou-a de volta na certeza de que a vida é mesmo injusta. E isso ela tinha que aceitar! Uns têm, outros não têm. Uns são felizes, outros pensam que são. Uns atravessam o oceano e descobrem um novo mundo. Outros não atravessam nem a rua, mas agradecem porque ficam. E o jeito era ficar e se conformar à injustiça da vida. E havia naqueles dias uma inquietação. Era o cunhado, Rudinei, que parecia ainda mais rude. "Traz logo o copo d'água, sua lerda!" Era o Adolfo que, por causa de problemas com o computador, xingou Doralice também pela falta de sal no arroz. "Mas eu pus sal no arroz!" Então Adolfo a xingou pelo tanto de sal a mais no arroz. Só Astolfo não a humilhou com palavras que humilham, porque não estava em casa. Até Narcisa andava irritada. E parecia que andava irritada com ela. "Já te disse pra não ficar espalhando por aí que meus filhos mexem com computador! Tem muita gente invejosa! E a inveja é uma merda! A inveja mata! Não conta mais nada pra ninguém, entendeu?" Doralice entendeu, sim, senhora! Só não entendia essa descarga elétrica em cima da sua cabeça. Ela não era antena que também serve de pára-raio! Não era, tampouco, uma privada para ser entupida com tantos dejetos! Foi para o seu quartinho no fundo do apartamento. Um quartinho apertado e abafado. Nele tinha um crucifixo na parede que dava para a cabeceira da cama, porque, para ela, era nessa parede que todas as famílias, aristocráticas ou rústicas, penduravam um crucifixo. Estava angustiada. Rezou e pediu que agüentasse. Mas enquanto rezava, imagens dos objetos caídos dentro do baú do inconformismo, pintado lindamente de resignação forçada, se intrometiam na reza. "Perdoai, Senhor! Eles não sabem o que fazem! E eu? O que fiz da minha vida? Eu também não soube fazer direito a minha vida! Perdoai-me, Senhor!" Um desses objetos perdidos veio à tona da lembrança. Foi uma tentativa de fazer amigos quando numa fase solitária de sua vida. É até engraçado dizer que Doralice teve uma fase solitária. Ela que sempre foi tão sozinha! Nasceu, cresceu e viveu sempre sozinha. Mas é que mesmo os solitários têm fases. E geralmente são fases de muita solidão! Então, ela decidiu fazer amizades. Sem muita paciência para encontrar uma pessoa que valesse a pena, foi logo conversando com a primeira picareta que apareceu. Seu nome era Vilma, e ela era mesmo vil e foi mesmo má com Doralice. Aconteceu, então, de Doralice e Vilma saírem juntas muitas vezes. Foram ao cinema, foram ao shopping, foram andar na grande avenida. Doralice pagou o ônibus, o metrô, pagou o sorvete e o ingresso do cinema. Doralice até deu um broche de latão para Vilma. Ela tentou sim, comprar a amizade de Vilma. Mas não foi assim, de maneira vil, nem má, nem premeditada. Ela achava que pagando essas coisinhas, essas pequenas coisas, iria agradar Vilma, e esta, agradecida e reconhecendo o esforço de Doralice, iria retribuir. Retribuir era um verbo que poucas pessoas usavam com Doralice. Tampouco Vilma o usou. A picareta aproveitou-se de tudo que Doralice lhe deu. Quando percebeu que ela gostaria de receber algum mimo em troca de sua amizade, Vilma arrumou uma briga, incriminou Doralice pela briga e foi embora. Doralice nunca viu retribuição, nem mimo, nem a mínima paga pela sua boa intenção. Que era a de fazer amizade para amenizar a dor da solidão. Depois da amarga experiência, viu que doía menos ser sozinha que pagar para ter amigos falsos, egoístas e interesseiros. A reza não avançou porque outra imagem encheu sua retina, escondendo o crucifixo. E Doralice se impacientou. Abriu a janela e viu as luzes da cidade, algumas pessoas andavam lá embaixo. Respirou o ar doce e salgado que vinha da padaria da esquina. Quis comer um doce. Quis comprar uma boneca. Quis bater na cara de alguém. Pela janela aberta do quarto pequeno e abafado, Doralice, de novo, viu o passado. Ela tinha comprado uma revista de viagem, dessas que só quem viaja compra e gosta de comprar. Ela comprou essa revista porque gostou da paisagem que viu. Era um campo imenso, com gramado verde e viçoso, e duas fileiras de árvores delimitando um caminho no meio do campo. Gostou da paisagem porque a lembrava muito dos sonhos que costumava ter. Ela não fazia idéia de que esse lugar era longe. Tão longe que precisava atravessar a rua. A avenida. Depois a cidade, o país, e o oceano inteiro! Tinha pago e colocado a revista no saquinho plástico, que a revistaria dá, ignorando as normas ecológicas de preservação da natureza. O que o saquinho plástico tinha a ver com a preservação da natureza? Doralice ignorava. Mas também o homem que pegou a revista de Doralice ignorava que ela tivesse uma dona. Foi um segundo, um triz, um zás! Doralice abaixou-se para amarrar os laços do tênis e deixou a revista, dentro do saquinho, sobre o balcão. O homem certamente achou que alguém tinha esquecido ali. E como no país de Doralice há uma mentalidade estranha, de que "achado não é roubado", o homem nem se deu ao trabalho de avisar a vendedora atrás do balcão e devolver o objeto. Pegou a revista e a colocou debaixo do braço. Doralice só teve tempo de ver o homem, com o saquinho debaixo do braço, saindo tranqüilamente da loja. Não esboçou reação. Como ela poderia reclamar o que era seu de direito? Ele certamente diria à ela: "É meu, eu acabei de comprar, minha senhora!" Com toda a dissimulação que um homem pode ter. Ela ficou olhando o homem com sua revista, pensando num jeito de se defender, que não veio. Isso de achar na rua e não devolver para o dono é assim, incorporado à cultura, como o cafezinho depois do almoço. Tanto que quando alguém devolve uma carteira recheada de dinheiro para o dono, ou devolve algum pacote que contém títulos ao portador, é manchete de jornal e reportagem de TV. Ah! É verdade! Doralice voltou para o seu quartinho apertado sem a revista de viagem. Nesse dia, ela chorou. Foi dormir que era uma inquietação só. As lembranças ruins, esses objetos amargos que caíam no seu baú, sem ela desejar, a perturbavam! Nem a reza, nem....nem....nem nada, (já que não tinha outra coisa que a acalmava), colocou seu coração sossegado, e a mente tranqüila. Um negócio no peito, um descontentamento, uma agonia sufocava a garganta. Virou de um lado, depois do outro. Até que uma hora, sem perceber, dormiu. Lá, quando a madrugada chega depois da meia-noite, o sonho veio ao seu encontro. Um sonho diferente. O campo de grama verde e viçosa tinha se transformado numa montanha íngreme. Doralice carregava seu baú cheio, pesado, com uma alça quebrada. Ela tinha que carregar esse baú até o topo da montanha, onde ficava o precipício. Fazia um esforço enorme. Tanto esforço fazia que o coração batia lento, a respiração rareava, o sangue ia devagar nas veias. Puxava e puxava o baú. Queria atirar esse baú precipício abaixo. Queria ficar mais leve. Ela queria não se lembrar mais de nada. Não tinha coisas boas para lembrar. Se as tinha, as coisas ruins, esses objetos amargos que deixavam a alma cheia de mágoa e pesar, tomavam um espaço maior no coração e na lembrança. Queria, então, livrar-se do baú. E puxava e arfava, e respirava com dificuldade. Chegou bem na beirinha. Estava prestes a mandar o grande e velho baú pelos ares, quando viu o Sol aparecer e convidá-la para uma dança. Deixou o baú ali, no topo da montanha e tirou sua roupa. Começou a dançar com o príncipe-Sol. E dançou e bailou a mais divina das músicas, a mais suave das melodias. Sentia-se livre! Doralice estava livre do baú, despida das amarguras, das pessoas egoístas que encontrou pelo caminho. Os passos da dança eram leves, parecia até que tinha asas nos pés. Doralice sentia-se feliz, amada, retribuída. Sentia que fora recompensada, reconhecida em toda a beleza de sua alma, homenageada pelo caráter nobre de suas atitudes e pela generosidade de seu coração. Doralice se sentia livre! E muito amada! E bailava e dançava com o Astro-rei na beira do precipício uma dança de eternidade. Dois passos para cá, um passo para lá, dois para cá, até que Doralice lançou seus pés no abismo profundo. Deixou no topo da montanha o velho e amargo baú. Narcisa deu pela falta da irmã na hora em que Doralice costumava levar o lixo para fora. Foi até o quartinho apertado dos fundos do apartamento, e lá, deu um grito, chamando toda a família. Os três chegaram e ficaram em silêncio, olhando a defunta dormir o sono profundo. Olharam e admiraram-se. "Como alguém com tamanha infelicidade na vida, pôde morrer com um sorriso tranqüilo e suave nos lábios?!" Sobre a cama, uma chave. "Bom! Decerto, a chave é deste baú aqui, ao lado da cabeceira!" "Que será que a titia deixou pra gente dentro deste baú, tão lindamente pintado?" - perguntou Astolfo curioso. "Abram!" - gritou o cunhado. E abriram. Olhando assim, por cima, sem ver o que ia no fundo, Adolfo respondeu meigamente: "Ah! São só umas coisinhas, umas pequenas coisas!" |
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