NA
GAVETINHA
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Bóris
Yan
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No dia em que o Almeida morreu, houve um tumulto agonizante. A Irene, coitadinha, estava desconsolada, ficou o tempo todo sentada à beira do caixão, ora lastimava a perda do devotado esposo, ora acariciava-o. As filhas Nadir e Neuza, já mocinhas, eram consoladas por parentes e amigas. - Como pode um infarto, assim, sem mais ou menos, matar um pai de família! Questionavam uns. - Papai nunca sentiu, sequer, dores de cabeça! Justificava Neuza. - Capricho de destino. Avaliava a mãe do defunto. O velório foi interminável. As coroas de flores eram cinco ou seis, mas davam um conforto mórbido. Os amigos da família, clientes e colegas do escritório estavam todos envolvidos num clima de comoção geral, aliás, o doutor Varella fechou o escritório de advocacia para dar o último adeus ao sócio. - Saia desta cadeira querida, vamos respirar ar puro. Imploravam as vizinhas. - Deixem-me sentada aqui. Retrucava a viúva chorosa. - Este ano eles fariam 18 anos de casados. Dizia, baixinho, a sogra do falecido. Enfim, a noite chegou. Alguns que ficaram durante o dia foram descansar, outros vieram para acompanhar a jornada noturna. A noite estava calma, quente, céu estrelado, os compadres e comadres colocaram a conversa em dia. As crianças dormiram. Lá estava Irene, sentada a beira do caixão, conversando com o marido morto, chorando, lamentando, beijando-o... No dia seguinte, o padre fez uma reflexão breve na igreja, mas não deixou de mencionar, exaltado, que a comunidade de Santa Marta perdia um cristão fiel, um pai carinhoso e um marido leal. O sepultamento foi uma coisa triste de se ver, Irene não desgrudava do caixão. A viúva fazia declarações de amor eterno aos prantos. - Calma filha, pelo amor de Deus, calma. Pedia a mãe de Irene. Ao som da primeira pá de terra sob o caixão, a viúva quase se jogou na cova. As amigas não podiam mais conté-la, ficando a cargo dos compadres essa dura ocupação. - Te amo Almeida e sempre amarei. Gritava Irene. - Acabe logo com isso. Exigiam os parentes ao coveiro. O sofrimento de Irene era lastimável! Os dias que se seguiram foram igualmente duros. A viúva vivia em luto fechado, não saia de casa, não se alimentava regularmente, não ia mais à igreja, só usava roupas pretas e as pouca palavras que dizia, eram sobre Almeida. Preocupada com a situação da filha que estava visivelmente perturbada, Dona Clara, mãe de Irene veio passar uns dias em sua casa. As meninas até que cuidavam da arrumação, mas era necessário a supervisão de alguém, além, dos detalhes de ordem prática como alimentação, contas à pagar, etc. Almeida deixou um patrimônio razoável como: a sociedade no escritório, o sítio, a casa em Floresta da Mata e algum dinheiro depositado em contas bancárias na capital. Três meses depois e Irene seguia cada vez mais debilitada. - Doença de amor. Suspiravam as filhas. - Filha, ainda és jovem! Não sofras tanto, o tempo é um remédio. Filosofava Dona Clara. - Por Deus mamãe! Almeida foi um santo e a senhora insinua que eu o esqueça, nunca, ouviu bem, nunca. Irritava-se Irene. Irene envelhecera dez anos em quatro meses, uma lástima de vida. A casa era cheia de quadro com fotografias de Almeida, havia uma vela na sala que nunca se apagava, parecia que o defunto ainda estava ali, um horror! Numa tarde o doutor Varella foi visitá-las, todo educado, cheio de cerimônias, tomou duas xícaras de café e finalmente tomou coragem. - Senhoras os tempo são difíceis no Brasil, há boatos de que sou comunista, imaginem! Riu-se. - São tempos difíceis. Concordou Dona Clara. - Penso em vender o escritório, claro que vou dividir justamente. Não é possível ser advogado aqui, quem dirá no Rio de Janeiro. Já discursava Varella. - Nunca pertenci a nenhum movimento de resistência. Falava de pé, como bom orador que era. O monólogo ou a tese de defesa de Varella durou quase duas horas. As senhoras não alcançavam as idéias e o discurso do sócio do marido morto, mas acenavam com a cabeça sempre. - Por tudo isso vou fechar o escritório. Concluiu o homem ofegante. - Sim! Sim! Consentia Irene. -Por favor, vá ao escritório e desocupe a mesa do meu saudoso amigo, lá há coisas pessoais apenas. Disse. Mais alguns minutos de conversa e homem saiu todo desconfiado, imaginando-se seguido. Depois do jantar, Irene confessava a saudade que sentia de Almeida e também discutia as palavras do Dr. Varella. - Comunismo? Perseguição? Que faremos mamãe? O país está mesmo confuso? Questionava Irene - Amanhã cedo irás ao escritório. Ordenou D. Clara. Há meses sem sair de casa Irene estava assustada, quase não dormiu a noite. Quando o dia se fez claro, Irene foi praticamente "empurrada" pela mãe a sair de casa. - Tens que aprender a resolver tua vida sem o falecido. Dizia D.Clara. Nadir trouxe um molho de chaves e uns papéis que não sabiam o que era. Finalmente Irene saiu de casa. Não cumprimentou ninguém pela rua, aliás, nem levantou a cabeça. Chegou ao escritório pálida, tímida e chorosa, como sempre. Funcionários e clientes olhavam admirados a viúva que dedicava-se ao luto e a memória do marido. - Uma santa senhora! Que alma. Disse alguém. Carminha, a secretária, lhe acompanhou até a porta da sala que dizia: Nestor de Almeida - Advogado. - Se a senhora precisar de alguma e só chamar. Disse a simpática jovem. Já na sala onde o marido trabalhou por anos, Irene chorou muito e mais uma vez exaltou a memória do marido. Do lado de fora, havia um silêncio absoluto, todos curiosos e prontos a ajudar se fosse o caso. Irene abriu gavetas e pastas, viu agendas e apanhou objetos. Algumas coisas eram pertinentes ao trabalho, outras eram realmente pessoais. Pegou canetas, fotos das meninas, fotos dela mesma, ajuntou porta-retratos e sentiu uma imensa saudade. Percebeu que havia uma gavetinha trancada. Forçou algumas vezes a gavetinha e até tentou arromba-la. Então, lembrou-se do molho de chaves, tentou algumas, forçou novamente, tentou outras chaves, até que numa das tentativas a gavetinha se abriu. Havia dezenas de cartas, algumas manuscritas com a letra de Almeida, então, tomada de curiosidade começou a lê-las. As cartas eram a correspondência entre Almeida e um tal de Jorge. Eram cartas de amor, fotos de viagens e passeios, além de pequenos souvenirs. Fotos do tal Jorge com pouca ou nenhuma roupa, fotos de Almeida coberto por plumas, cartas ardentes comentando a saudade que sentiam e os planos da próxima viagem de trabalho, que na verdade seria um passeio romântico. Bilhetes narravam o quanto Almeida tentava suportar Irene. Primeiro veio o susto, depois a confusão e por fim a ira, muita ira. - Desgraçado! Maricas! Esbravejava Irene. Alvoroço do lado de fora. Irene saiu da sala possessa. - O que foi Dona Irene? Questionou Carminha. - Filho-da-puta, desgraçado, maricas. Dizia aos berros. - Eu aqui chorando pelo desgraçado que me traiu com um homem há anos. Gritava a quem quisesse ouvir. - Grandessíssimo filho-da-puta! Vociferava. Quando tentavam acalma-la ele berrava ainda mais. Voltou para casa "cuspindo fogo pelas ventas", foi se livrando das roupas pretas pelo caminho mesmo. Já chegou em casa ordenando. - O luto acabou hoje mamãe. Tire as fotos desse desgraçado da minha frente. - Enlouqueceu menina? Assusto-se a mãe. - Mamãe o Almeida é o desgraçado mais maricas que eu já vi na minha vida. Gritou - Como assim? Perguntou estarrecida. - É um grandessíssimo filho-da-puta, mamãe, eu vi! tava tudo lá na gavetinha. |
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