CHÁ
DE POEJO
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Sharon
Ratis
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Minha noção de tempo é diferente da dela. Para mim, são os primeiros dias. Para ela, os primeiros anos desde que tudo aconteceu. Ou ao contrário. Uma coisa ou outra não faz diferença. Sempre que posso, procuro me aproximar dela. De algum jeito, ela sente minha presença. Não sei o quanto desse estrago fui eu quem fez, o quanto desse caos já existia dentro dela, mesmo antes de eu chegar. Se existia, estava adormecido, fui eu quem despertou. Minha culpa, de qualquer forma. Ela gostava de lavar meus cabelos numa bacia de prata bem antiga. Ela nem se lembra mais de onde veio aquela bacia. Eu me lembro. Estávamos numa feira de antigüidades, ela apontou para a bacia: - Você é um príncipe, o meu príncipe. De hoje em diante, vou lavar seus cabelos nessa bacia de prata. Tinha uma expressão que ela usava para falar da água. Dizia que era água benta. Não, espera, não era água benta que ela falava, era água sagrada. Dizia que ia lavar meus cabelos de príncipe na bacia de prata com água sagrada. Para purificar meus pensamentos. Então ela fazia eu me sentar no tapete todo furado por brasas de cigarro, apoiava a bacia em suas pernas nuas e começava a banhar meus cabelos. Às vezes, eu tinha a impressão de que ela lavava fio por fio, tamanha delicadeza. Isso tudo aconteceu já perto do fim. Ela estava sempre com as pernas desnudas, usava somente a camisa do meu pijama com só dois botões fechados. Estava rasgado na altura do ombro. Eu rasguei, lembro-me bem, enquanto ela tentava me acalmar. Numa das minhas crises. Agora a vejo com esse mesmo pijama. Por isso não sei se são os primeiros dias ou os primeiros anos. Ela passa a maior parte do tempo com os olhos vidrados. Olha, mas não vê. Fica sentada no balanço da varanda fitando o mar. Uísque numa mão, cigarro na outra. Às vezes, nem o fuma, só o segura até a brasa queimar seus dedos. Então, sonâmbula, acende outro. Como se esperasse me ver sair de lá do fundo e vir andando sobre as águas. Ou talvez ela esteja pensando em ir mar adentro até ser engolida pelas ondas geladas. Não, ela não faria isso. Houve
uma vez, logo depois que cheguei, se não me engano, que ela foi
me arrancar dos braços do mar. Nem sei como fui parar ali. Era
noite, chovia muito. Dei por mim enrolado em um lençol encharcado,
as ondas quebrando em nossas coxas. Ela me puxava, abraçada a mim:
vamos, já vai passar, você vai ver que já vai passar.
Éramos dois vultos quase invisíveis no meio da tempestade. Agora ela anda tropeçando nas caixas de remédio vazias. Pisa em cacos de copos e garrafas, corta os pés, mas parece não sentir dor. Igual a mim quando me arranhava até sangrar. Não sentia dor. Ela não vê seu sangue escorrendo, formando manchas quase negras depois de seco. Meu castigo eterno é este: observar quem eu amo se destruir exatamente como eu fiz. Observo-a e é como se observasse a mim mesmo. Eu era assim quando cheguei debaixo do que chamávamos de "a tempestade do século". Aqui é assim, sabe ? Chove o tempo todo. Teve um dia que ela massageava meu estômago e segurava minha mão. Ela dizia que esse mau tempo era o que nos deixava triste. Que a falta da luz do sol a deixava melancólica. Mentira, fui eu quem trouxe a tristeza e a melancolia. E as dores, meu Deus, as dores! Numa outra ocasião, logo após aquele episódio dos comprimidos com champanhe, ela foi me buscar no píer. Sentamos nas pedras, alta noite, já nem sentíamos mais a chuva fria. Ficamos olhando as ondas arrebentando aos nossos pés enquanto ela massageava meu estômago. A única luz era a do farol, lá embaixo, para iluminar o caminho dos perdidos, dos solitários, dos loucos e dos suicidas. Para quê iluminar um caminho que já se desistiu de seguir ? Se é mais confortável ficar perdido. Se o escuro é o lugar mais seguro porque a luz queima como a brasa do cigarro, deixando cicatrizes no tapete. Agora ela apagou o cigarro com a mão. Fechou a mão e apertou com o cigarro aceso lá dentro. Numa discussão, ela me disse que, ao contrário de mim, não sentia medo da dor. Ela ainda não sabe, mas vai descobrir logo que morrer não dói. Sei disso porque ela me repete dando continuidade ao que não devia sequer ter existido. Alguém vai copiá-la também. Lemniscata. Dor, medo, solidão, nem esses sentimentos consigo mais ver em seus olhos. Seu olhar é vazio. Ela fecha as cortinas com movimentos lentos, nenhuma pressa. Afasta-se da imensa porta de vidro da varanda. Com passos leves, sem produzir nenhum som, agora ela anda na direção do armário. É lá que ela guarda minhas roupas. E minha arma. |
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