Tema 182 - Primeiros anos
BIOGRAFIA
XITAS DE PENA
João Gilberto Engelmann

Um relâmpago fechou a madrugada de tempestade e viu-se temerosa. Pensava consigo que tempestades eram coisas para se gostar, como todo o excêntrico que gostava. E eis que só gostava das excentricidades. O rotineiro e comum não bastam para uma vida como a que Lolô Girdani gostava de levar. Naquela madrugada assombrada pela troca frenética do tom e da escuridão, eis que somente pensa enterrada em sua cama ainda de ferro. Ainda de ferro porque camas assim já não fazem parte dos então amadeirados ou dos estilos modernistas que ilustram nossas alcovas hoje. Não aquela cama de ferro. Rústica, resgata o requinte digno de suseranos nobres de um tempo requisitado em pensamento. E então ela pensa.

E eis que adentra a noite sem sono e vê-se atônita em sua lucidez. Decerto dormiria durante o dia, conforme lhe ditara algum anjo dos excêntricos. Fez auto-regressão e viu-se nova, viu-se criança ainda. E chove mais.

Blenda Loiola Girdani chora na maternidade do Hospital Pietro Sardoni Bonapaz, em Nóbrega Susano, interior de algum país de maravilhas. Seu choro perde-se nos corredores alvos rodeados por azulejos minúsculos postos de maneira nunca vistos, excêntricos. Tão regulados, distam um fio um de outro igualando o branco de doer nos olhos. Chove bastante. Dos fundos do hospital ouve-se uma cantiga triste de morte:

E de onde vens, ó derradeira?,
Que te secam para que vás,
E assim, contigo a sorte,
De se ir sem mais voltar...

Lolô vivera até o momento tendo sempre à mente a letra e melodia daquilo que ouvira quando nascida. Não sabia se a música falava de seu nascimento ou da morte daquele que lhe dera o lugar. Deveras que alguém morresse para que outro pudesse viver, pensava Lolô. E parou seu choro para escutar. E assim, mamãe e papai com ela. Lolo apenas se retorcia no berçário para melhor ajustar as orelhas em busca do som já familiar. E eis que dorme em sua cantiga de ninar:

E de onde vens, ó derradeira?,
Que te secam para que vás,
E assim, contigo a sorte,
De se ir sem mais voltar...

Lolo tem seis anos e corre pelo pátio de casa. Está vestida de rosa com laço nos cabelos; não brinca de boneca com as menininhas puras, como sempre observara. Brinca de bola e taco com os meninos da vila, com os meninos mais tinhosos da vila, porque os outros são puros e coisas puras merecem o céu. Para Lolo o céu não é importante. E assim, ganhar o céu não faz parte de suas investidas. Com o verão apreendeu que o calor facilita o brincar; o céu deveras que deva ser gelado. As pessoas que agem para ir pro céu são geladas, e ela corre atrás de alguma bola para viver a sua terra. Mas eis que vem uma tempestade. Corre atônita para o quarto, afasta as cortinas e ilumina de relâmpagos o dia que se fez noite. Cortinas são para o sol, não para as tempestades. Na segunda vez que pisca, sua luz apaga e o espetáculo fica ainda melhor. Figuras se formam e somem a cada lampejo do céu. Basta ficar rente à janela e escutar da torrente ruidosa que desce dos céus enquanto se murmura alguma cantiga:

E de onde vens, ó derradeira?,
Que te secam para que vás,
E assim, contigo a sorte,
De se ir sem mais voltar...

Avista meio ao longe o vulto de um preto que se aproxima. Embaixo do negro guarda-chuva há alguém especial. Acaso será a Valdinha, única menina pura que Lolo gostava? Sim, com sua mãe, que decerto gosta do famoso chá de maçã com bolinhos de chuva que Sra Lolo serve em tardes de chuva, aproxima-se a Valda com seu vestido azul de bolinhas brancas na gola. Para Lolo, melhor que se vestissem calças curtas e camisetas longas como as do Juninho, do César, do Gugu. Mas só o vestido da Valdinha lhe parecia bem apanhado. Seu corpo ainda franzino dava bom caimento ao corte do tecido e sua fita de cetim encantava ainda mais. Lembrara do dia em que conhecera Valdinha. Quando se mudou para a vila e passou a não gostar da nova escola, um dia a abençoada chegara perto, mas bem perto mesmo, e confessara: também não gosto dessa escola, mas é a que temos. Os olhos de Lolo nunca haviam brilhado daquele jeito. Nem o reflexo dos relâmpagos que transpassavam a janela de seu quarto e acomodavam-se no fundo de seu olho o faziam iluminar-se daquele jeito. Lembrou do 'pois é' que respondera e do convite para um taco que fizera. Lembra ainda do primeiro sorriso de Valdinha ao receber o convite. E eis que agora já faz quase um ano e queria ver novamente aquele sorriso.

Desce correndo as escadas do antigo sobrado que rangem à força de seus passos. Diz um oi apressado à senhora Dilsa e correm as duas para algum cômodo onde se possa brincar. E eis que a tarde corre e a chuva não cessa. Cansadas daquele brincar ofegante sempre proposto por Lolo, lançam-se ao chão vencidas. Ficam somente a olhar pela janela e descobrir os monstros que a água desenha no vidro soado. Quietas por alguns longos minutos.

Lolo pensava consigo o quanto lhe parecia boa a companhia de Valdinha. Nem os meninos e suas brincadeiras eram tão convidativas como o simples estar ao lado de Valda e quase dormir ao acariciar aquele cetim macio. Sentiu vontade de pegar na mão de Valda e dizer um 'te gosto'. Um som advindo da sala as chama para a vida que existe lá fora. E Valdinha deve ir para casa porque já está tarde.

E de onde vens, ó derradeira?,
Que te secam para que vás,
E assim, contigo a sorte,
De se ir sem mais voltar...

Canta e dorme sem nem pensar no que dizem as palavras que sussurra. Boa noite Valdinha, Durma bem. Sonha.

E já é tarde. São seus cabelos que anunciam que a meninice há muito é somente lembrança. Os tempos de Lolo e Valdinha estão seguros em sua memória. Presos como o grito sôfrego na garganta calada. E sempre os temporais trazem à tona aquilo um dia vivido e que foi bom. Traz consigo também o dia em que Lolo transformou-se em Lolo só, sem Valdinha.

Não havia nenhuma tempestade no horizonte e o sol castigava a pele clara de Lolo. Voltava para casa depois de uma rotineira pelada com os meninos da vila, sempre os tinhosos. Tivera feito gol e cometido várias faltas, como de costume. Vestia calças curtas e camiseta preta longa, o que deixava tudo mais quente. Até olhara para o horizonte à procura de alguma chuva vindoura, mas tudo que via era um azul de colocar qualquer amante das tempestades num profundo mau humor. Aproximou-se de casa com passos largos e cara de despreocupação e deparou-se com sua mãe e a Sra. Dilsa a conversarem na escada de casa. Disse o tradicional 'olá Sra Dilsa' e pô-se dentro de casa. Fincada no sofá da sala entretida em tirar algum espinho do calcanhar, vê sua mãe entrar calada e com cara de pesarosa.

Nunca tivera pensado em estudar, brincar, passar tempestades sem saber que Valdinha estava logo a duas quadras de sua casa. Agora que os Birkelein iriam mudar-se tudo isso surge como que em ímpeto rasgando-se o sossego. Que tal as tardes de chuva sem a certeza de que Valdinha chegaria? Nenhuma tempestade mais seria a mesma. Nada mais seria o mesmo. Blenda Loiola Girdani nunca mais seria a mesma. Decerto Valdinha encontraria uma nova amiga na cidade para qual ia e, certamente, por lá viveria feliz.

Pô-se em pé e correu as duas quadras que a separavam de Valda; talvez ainda desse tempo de toma-la rapidamente e fugirem ao refúgio da árvore tão bem escondida que adultos desconheciam; talvez desse tempo de leva-la ao país da Alice e por lá terminarem seus dias felizes. Mas eis que a encontra ante a escada de casa com alguma mochila nas mãos em tom de pesar. Ela deve mesmo ir embora e, com ela, o encanto das tempestades, senão da vida.

A despedida a faz tremer as pernas e soluçar a mágoa. Os berros que se ouvem combinam a infinita tristeza de uma junto à indignação e revolta da outra. Mas nem os xingamentos de Lolo ao Senhor e Senhora Birkelein pelo sacrilégio mudarão alguma coisa. E Valda afasta-se em marcha fúnebre. E some na curva de casa.

E o tempo dos doze anos morre. E com ele a meninice e inocência. Restaram as tempestades de lembranças que rodeiam sua encilhada e a fazer ainda sentir o gosto de alguma coisa. Conseguira, afinal, ser feliz depois de Valdinha. Aprendera que tudo que se tem se perde e a vida é um eterno morrer um pouco e viver um tanto mais. Via-se agora sozinha no antigo sobrado de sua infância desde a morte dos pais. A sorte reservara-lhe a solteirice e o tão só da noite começava a ser penoso, martírio que rumina de pouco em pouco. E eis que valdinha não chegaria naquela chuva porque estaria, decerto, sendo feliz em outros aconchegos e deitada em outro carpete macio a observar novos monstros nas janelas soadas. Lembrava agora dos versos escutados muito depois da antiga cantiga:

Não serei o suficiente longínquo para dizer amores,
Terei sempre diante de mim o medo e a indignação.
E ontem, que te fostes, senti que a vida sempre é isso:
Um deixar constante de pesar e pranto. Depois passa.

E também a ti não parece que é assim?
Que aquilo tudo que o coração tremia era só o instante do começo?
Agora a calma, que tem nome de frieza,
Faz-me ver-te mais reluzente, mais real.

E se és mais real, és mais fatigante.
Para mim que te sei, para ti que te sentes.
O que se me esconde foi descoberto na esquina de casa.
E seu amor me fez ver o quanto não podes amar.

E ontem, enquanto te via nu,
Sem dignidade e atônito, afoito e falante,
vi-te mais como és.
Vi que o amor sempre enfia os dedos em nossos olhos.

Tudo o que outrora brilhava,
E se brilhava era dissimulação de meus olhos ardidos,
Começou a ser como é e como deve ser.
Com o amor saí o turvo da alma e tudo se mostra diferente. Real.
Bem vindos à realidade...

Desce até a antiga cozinha proposta a um chá; de maça com canela, que seja, e já é tarde da noite e hora em que os excêntricos tomam chá. Ouve que alguém lhe chama e deve ser mamãe pronta a recriminar sua investida ao fogão. Os ecos da casa respondem que já não se é mais criança e a vida não mera inocência e brincar. Mas eis que todo o seu tempo é aquele que tem e o que vive um eterno assassinato de segundos. Nada pode contra os dias que vive e nada posse contra os dias que lhe faltam. E o presente, e o presente? Eis que o presente é uma combinação ordinária deles dois num dia que não se pode tanger. Disso, sabe que para seu tempo não há domínio e para sua certeza não há volta.

E este tempo hoje fadiga mais e dispõe sempre o poeta ao sono. As têmperas cansadas cedem ao bocejo e o dia ainda vai longe em que se vê novamente o sol. As pernas mais doídas recusam o caminhar e a estagnação atinge também a alma inquieta e já é tempo das tempestades, para que se retome o ânimo.

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