Tema 182 - Primeiros anos
BIOGRAFIA
SELVAGEM NO DIVÃ
Eduardo Prearo

"Nunca pare porque tem medo - não há como você estar errado."
Fridtjof Nansen


O sono não vem, nem as imagens, paisagens que o fazem relaxar e simplesmente dormir. Mesmo sem inspiração, tenta escrever alguma coisa. Não saiu pra rua, pra noite; antes tivesse saído, distraido-se, mas alguma coisa o impediu. No céu não há estrelas, e agora ele percebe coisas que se movimentam sozinhas sobre a mesa: a água faz o copo de papel ficar deslizando. O sono veio uma certa hora, o cansaço, mas depois o sono foi embora, amedrontado. Nojo, sim, nojo é o que sentirá quando tiver de sair sem ter pregado o olho, com aquela culpa horrenda por ter esvaziado a divina energia. Clarence o deixou chateado, como sempre, e também todas as outras pessoas, isso é bem normal. A populaça desconhecida vive a sussurrar coisas novas quando o vê, como por exemplo, Deus me livre. Sim, Deus os livre dele. Mas ele é o que sempre quis se ver livre dela: lá fora a xenofobia está num crescendo. Clarence diz que em São Paulo há as pessoas mais belas do mundo, e ele interpreta isso assim: lá fora é então um circo dos horrores. Clarence, no último domingo, convidou-o para um almoço, mas ele tem vergonha de almoçar fora porque não consegue engolir e bebe junto com a comida. Isso para alguns empregadores sempre foi motivo de escândalo, talvez de falta de humildade. T.Y., é feio isso, é feio beber durante as refeições, é primitivo, indelicado! Morra de fome! Mas desde pequeno T.Y., desde os quatro anos, pelo que se recorda, teve problemas com a saliva, não conseguia engoli-la. É tudo uma questão de treino e domínio. Em Paris agora são seis e vinte e cinco da manhã, mas o que importa? O quadro com uma imagem acaba de cair. T.Y. está massando 0.083 toneladas. Vai para a cozinha, abre a geladeira e toma o restante do leite? Já disse a si próprio que não voltaria a tomar leite. A falta de imaginação o deprime. Ir agora à casa de Clarence seria loucura, mas aquela piscina extensa o atrai. Pensa em um mergulho durante a madrugada, sem que ninguém perceba; pensa em imaginar-se diante do Taj Mahal, mas desiste porque o Taj Mahal mais bonito seria o negro, o que não acabou sendo construído por causa da morte da princesa, não se sabe ao certo. Ah, quantos pecados! E não é que Clarence lhe disse outro dia que a vontade de comer doces está relacionada com a falta de dinheiro? Talvez. T.Y. sente-se involuindo, caindo no mais profundo dos abismos. Clarence está se tornando insuportável: ela é amiga ou inimiga? Ela liga de vez em quando e eles ficam horas no telefone falando sobre coisas como a recente aparição de Tim. É que Tim apareceu outro dia na galeria onde estavam vendo umas jóias, uns relógios caríssimos, acompanhado de uma mulher morena. T.Y. estava hipnotizado pela estátua de um Buda. Tim o chamou pelo nome, lembrou-se do nome dele. T.Y.!T.Y.! Inacreditável. Inacreditável como podem pessoas ricas e pobres de espírito se lembrarem de pessoas pobres e ricas de espírito. E a visão de Tim trouxe a T.Y. lembranças esquisitas. Se fosse abraçá-lo talvez houvesse violência. T.Y. apenas disse um oi, um oi robótico. Como o passado é ridículo e sem sentido. O sono voltou, mas não a vontade de dormir. T.Y. boceja, simplesmente boceja. A casa onde está vive cheia de gente invisível; ela deixou de ser um refúgio, e não será novidade se for invadida por seres de carne e osso. Todos os despertadores estão acionados, todos, e no último volume. Por que tanto medo? Esse senhor é calvo, dizem. Oh, grande constatação. T.Y. crê erroneamente que tem deveres com a humanidade, ou seria com a comunidade? De qualquer forma, desbloqueou o celular para poder utilizar os serviços de uma nova operadora. Não há mais filas para a compra de cartões telefônicos. E não é que a populaça desconhecida está no momento a sussurrar cvv? Naturalmente acham que ele, com esses créditos, vai ligar para samaritanos para praticar o onanismo. A burocracia tem aumentando muito, e por causa da malandragem. Pessoas se utilizam da generosidade do Estado porque são preguiçosas: essas sim conseguem a tal da generosidade; as que precisam geralmente não. Isso tem algo a ver com Netuno na casa três? Quem sabe. Hitler tinha algo na casa três: ah, sim, a Lua em conjunção com Júpiter. Maria-vai-com-as-outras? Não tem cabimento. Ir até a cozinha e tomar o restante do leite é uma tentação e tanto. Mas depois T.Y. terá de escovar os dentes de novo. Seus sonhos de consumo atuais são uma confortável poltrona e um aspirador de pó. É estranho descobrir-se caseiro. Menos estranho é descobrir-se burro diante de tanta inteligência aí pelas ruas. O que faria uma pessoa com um qi duzentos no lugar dele? Naturalmente não estaria nem aí, estaria dormindo, seria casta como as flores. T.Y. pensou em ir ao cinema na semana passada. Cinema era tão legal!, mas agora a inveja que tem por esses atores, esses seres privilegiados, impedem-no, assim como a grana. Queria ser artista de cinema, mas isso é pecado também. Não entende por que Carmem Miranda surge imensa no céu, às vezes. No cinema a vida das pessoas é tão linda! A vida de T.Y. talvez seja linda na parte das amizades: nunca teve uma. Clarence é dessas do fim. Mas as amizades que pensou ter no passado, as pouquíssimas, T.Y. nem se lembra mais, e elas muito menos dele. Podem até se lembrar, mas não para um abraço ou para belas recordações numa tarde de domingo, essas coisas. 03:19. Foi o café; não havia água e T.Y. tomou durante o dia café como alguém sedento que toma água. Tia Maggie fazia isso, mas T.Y. nunca soube se ela tinha insônia. Tia Maggie o salvava das ondas gigantes. Oh, Senhor, por que não me compra uma casa ampla nos arredores do centro de São Paulo; meus amigos todos têm casa própria, eu preciso de uma compensação. T.Y., exemplo obviamente negativo, resvala no inferno, é o homem do cigarro, persona non grata. Os pássaros começam a cantar, mas por que sempre a essa hora? Que arrependimento por não ter saído; é que precisava ir ao banheiro; estava retendo o cocô nos orelhões enquanto fumava. A barba já coça. Ela agora nasce branca como a neve. Que roupa irá vestir hoje? Hum, talvez o terno preto lhe caia bem. O preto e branco é o padrão por aqui. Só não se entende por que nas lojas tudo é colorido. 03:47. Um anjo lhe aparece, é Cristal...

"Oi, Cristal, tudo bem?"

"Por que o senhor está assim, por que não dorme um pouco?"

"É mesmo. Mas a burocracia não perdoa a insônia."

"Está pensando besteiras, como sempre."

"Sim, estava pensando que Santa Ana devia ter feito o mapa natal da Virgem Maria. Passou-me pela cabeça que Santa Ana planejou a hora do nascimento da filha."

"É verdade, como sabe?"

"Heresia. Não sou um bruxo, muito menos santo...vou dormir."

07:00. T.Y. levanta-se e toma banho em trinta segundos. A sabatina a respeito da crise mundial o incomoda. Veste qualquer roupa, desce o elevador e escuta "peito inchado, viado!" Não deu tempo de dar bom dia, e como já lhe disseram uma vez, quem diz muito bom dia acaba dando bom dia a cavalos. Mas para uns dar bom dia sempre será fundamental. Quer correr, está atrasado, mas tem vergonha de correr. Seus óculos de repente quebram, e a garantia ele jogou no lixo. Pensa nos diamantes de Angola, enfim, pensa no mundo de forma confusa. Deve estar na primeira encarnação ou ser um renascido dos tempos atlantes. Milardósia ainda não chegou ao trabalho. Quer vê-lo ma merda, mas mima-o com docinhos e bananas. T.Y abre o jornal: Prasanta Flores em Paris. O que faz essa nova rica em Paris? Naturalmente que ela não freqüenta as periferias de lá, tão iguais a de São Paulo. Vai embora do trabalho, parece um peso ali. Vai para um parque por volta de meio-dia e meia, tentar ler. De repente não mais que de repente, ninguém mais o olha com interesse, e isso já faz dois anos. Acomodou-se na solidão, em tudo. Ainda faltam cinco horas para que ele se deite no divã e fale. Precisa falar sobre tudo ao mesmo tempo, mas ainda não chegou na fase telepática, naquela coisa de dizer tudo em um segundo. Quando deixará de contar detalhes de sua vida aos outros? Quer dinheiro para pintar quadros, abstrações, dessas de salas de consultórios. Quer fotografar, mas lhe falta sensibilidade, afinal ninguém o elogiou. Já são seis horas do horário de verão e o guarda apita para que todos se retirem. Parques não deveriam fechar nunca, pensa. Ele sai dali, resolve ir para a casa do velho Sam. Mas Sam não se encontra, a porta da mansão está entreaberta, T.Y. sobe as escadas, T.Y. entra em um quarto de hóspedes onde tudo está mofando. T.Y. mofa. A casa está deserta, mas a cidade também; T.Y. não quer ser mais a Ave Maria Cheia de Graça que foi um pouco na juventude; ninguém mais o olha com aquele interesse de fazer amizade, e nesse deserto, há observadores para o qual mais cedo mais tarde o tempo também não será amigável. Sam não aparece, mas T.Y. avista empregadas esfregando os chão. Pula a janela, pula de três metros, ruma para o consultório do Dr. Fire.

"Chegou atrasado hoje."

"Sim, estava na casa do velho Sam. Ele sempre me ensina algumas magias, sabe, essas brancas, ou então essas verdes."

"O que está acontencendo?"

"Nada. Somente aqui acho que existo um pouco. Quem sorrirá para mim um sorriso daqueles, um sorriso que perdoa todos os pecados?"

"Ainda pensa em se mandar do país?"

"Se tivesse dinheiro sim, mas não a trabalho. Agora estão a dizer que a xenofobia aumentou, e estou cansado. Sou mesmo um velho sem-vergonha. Clarence finge-se de surda, por vezes. Essas pessoas que se fingem de surdas são chave de cadeia, eu sei, e talvez no sentido literal da coisa. Me acostumei com a solidão, e isso é um fato inédito. Mas tenho ainda aquele defeito de, mesmo sendo introvertido, pensar falando. Não, não creia que seja introvertido, mas um extrovertido que não deu muito certo..."

"Um extrovertido que não...?"

"Um extrovertido que não deu muito certo."

"Não entendi."

"Você quer que eu grite? Para sair do país a trabalho ou não é preciso ter bens, alguém que se responsabilize pelos danos que você possa causar à outra nação. É assim em toda parte enquanto não houver um único governo, se é que haverá um único governo um dia."

"Não está gostando da terapia?"

"Não sei. Talvez ela esteja sendo bravateada porque em mim não emerge nada de muito honesto ou direito, sabe. Sei que revolto. Ando comendo muito doces, sonhando com eles. Acho que estou engordando. Não dormi bem. Por que esses lencinhos sobre a mesa? Dúvido muito que eu chore aqui. Por vezes me dou um tapas, aí choro. Mas dizem que para chorar basta estar sem dinheiro, sem..."

"Sem?"

"Sem cigarros, esse vício que odeio, por exemplo. Clarence é uma mulher adulta. Eu não tenho juízo. Mas ela muda de uma hora para outra. Melindrosa. Sabe, estou saindo daquela fase de não gostar do país em que vivo. Morri para o mundo e para muita gente. Escrevo. Tenho escrito para um site, expondo-me, expondo parte da minha burrice."

"E escreve sobre o quê?"

"Escrevo sobre mim. Não valho nada, eu sei, não tenho lá muito conteúdo para expressar, para ajudar o próximo. Waleska disse-me para desistir de terapias, pois tenho, segundo ela, uma ótima auto-estima e sou equilibrado. Estou depressivo, isso sim. E agora que resolvi voltar a amar meu país, estou achando os líderes daqui verdadeiros heróis. De qualquer forma, essa idéia que sempre me foi passada de que o individualismo austero é algo bom, está difícil de ser rechaçada. Não consigo imaginar pedintes dignos."

"O que tem sonhado?"

"Não me lembrado de sonho algum, e é a primeira vez que o dr. me pergunta isso, não é? Queria uma terapia do inconsciente para o consciente e não assim, só falando do cotidiano.Tenho acordado tarde, outro pecado. Hoje acordei bem cedinho. O telefone geralmente toca por volta das onze, e tenho como norma nunca atendê-lo após as nove. Nunca após as nove. Sei que é alguém cobrando, mas depois me arrependo de não ter atendido, pois poderia ser uma oferta boa de emprego, algo assim utópico. Ou então Clarence, ou na mais remota das remotas das possibilidades o sem-tempo Tim, ou a telefônica dizendo que irá cortar o telefone."

"O sem-tempo Tim é um homem forte."

"Por que diz isso? É, ele é um homem forte e também bonito. Ontem, Dolores me disse que gosta de homens que passam cremes, que são vaidosos. Recomendou-me creme nívea. Imagine se vou passar essa coisa oleosa, ainda mais com a normal temperatura de 91.4o F. Sam não passa cremes, acha coisa de mariquinhas."

"E você é maquirinha?"

"Eu brincava muito de amarelinha, mas não sei ainda ao certo. Penso que gosto de limpeza. Eu pulo por vezes móveis manchados, mas pulo-os somente para mim mesmo. Depois eles sujam de novo e de novo, e talvez somente aí é que entre alguém. É sempre assim. Tenho de lhe explicar tudo de novo, tudo o que já expliquei sobre várias coisas?"

"Talvez sim."

"Talvez sim?"

"Você se recorda dos primeiros anos de sua vida?"

"Muito pouco, muito pouco. Lembro-me do Jornal Nacional, por exemplo. Ao assisti-lo eu berrava: aparecia um olho gigante na tela! Lembro-me da negra levando-me da sala de parto, mostrando-me a uma mulher branca e chique que ao me olhar disse não. Lembro-me do poço, dos cachorros que eu atirava no poço. Eu era uma criança bem ruim, dr. Aos quatro, tentei fugir de casa, mas me acharam. Eu sempre fugia. Queria ser independente como os adultos, sabe. Parece que continuo assim, querendo ser independente como os adultos. Agora cá estou eu, armando coisas contra mim mesmo por ignorância; talvez acabe na rua da Amargura."

"Que monstrinho de criança! Mas fale-me mais sobre essa mulher branca e chique."

"Ela me pegou no colo e sorriu. Depois foi percebendo-me bem e acabou por fazer cara de ânus glicosado."

"Mas você me disse que foi bebê Johnson."

"Quase dr., quase. Por causa de duas polegadas não saí nos pacotes de fraldas. E fizeram bem em não me eleger o bebê do ano, naturalmente porque os bebês Johnson daquela década hoje são pessoas belíssimas. Teve um que foi recentemente até para a ilha de uma revista ser fotografado, coisa e tal."

"Mas você acha que se fosse eleito o bebê do ano seria outra pessoa hoje, uma pessoa melhor?"

"Esse papo já está me esgotando. Estou escrevendo, acho que todo mundo deveria escrever. Estou escrevendo poemas. Com poesia não sou muito bom, mesmo lendo o que é poesia. Sei lá se sou bom em alguma coisa!"

"E sua auto-estima?"

"Por favor, menos. Mas o que foi que disse? Auto-estima? Ela tem que melhorar, eu sei. Sabe, agradeço pouco pelas coisas que tenho, as coisas boas. Queria agradecer aqui, mil vezes."

"Acho que ainda dá tempo..."

"Obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado..."

"É de alguma seita oriental? Seu tempo já acabou."

"Um homem perdido apela a tudo, não é assim?"

"Não, não é assim, pelo menos para mim. Pelo que sei o senhor é católico. Vai até à casa de Sam, agora?"

"Sim, depois daqui me consulto lá."

"Quartinho."

"O que foi que disse, dr.?"

"Se quiser pode ficar mais um quartinho de hora..."

"Não, você já deve estar cheio de ouvir obrigado. Melhor seria ter dito somente grato. Tchau."

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor