PRIMEIROS
ANOS
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Aline
Carvalho
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Era uma casa geminada, aliás, era um chalé que fora dividido em quatro residências, o que antigamente se chamava parede-meia. Tinha uma sala, um quarto, cozinha e um banheiro, tudo pequeno e bem, bem antigo. Da porta dos fundos da cozinha descia uma escada íngreme e sinistra, que ela visitou uma duas vezes apenas, e que desembocava em um tanque de lavar roupas, caminho coalhado de teias e de suas donas, negras e peludas. A casa não tinha laje, apenas um forro de madeira pintado de vinho escuro. As janelas eram da mesma cor, e davam para a rua, e eram tão frágeis que um ombro mais decidido as poria abaixo. A caixa d'agua ficava sobre o forro da sala e, como não tinha bóia, a cada vez que enchia provocava uma inundação. Eventualmente via pequenos ratos correndo na cozinha, ladrilhos que tinham sido amarelos e que agora eram apenas gastos. Habitavam o forno do seu fogão. Uma vez achou um ratinho morto, asfixiado dentro do saco plástico que usava para proteger as roupinhas daquele que deveria ser seu primeiro filho. Parecia um brinquedo inocente, como tanta coisa que pode ser inocente e danosa. A mobília era pouca, o fundamental: cama de madeira escura, mesa e quatro cadeiras, sofá. Armário emprestado, negro, enorme, madeira entalhada. Vira um parecido no fórum da cidade fluminense onde sua mãe nascera. Na cozinha, uma pequena estante pintada de azul fazia ombrearem pó de café e sabão em pó, troca de pós e odores, pós e sabores. Em frente, do outro lado da rua, uma oficina mecânica. De dia, sons do oficio. Podia ouvir, depois do expediente, a conversa imprópria, os risos, as vozes masculinas altas que seu medo achava dispostas a quase tudo. A casa ficava em uma ladeira. Da pequena varanda envidraçada, avistava a igreja matriz e, à noite, o estojo de veludo negro cheio de diamantes inacessíveis em que a cidade se transformava. Naquela
cidade conhecera a indiferença. Embora o norte fosse marcado pela
serra, com seu cristo permanente velando o vale, perdia-se com facilidade
nas ruas e nas fisionomias vazias por que passava. Olhava em volta e se
admirava. Parecia estar numa viagem longa. Que dia iria terminar? Naquela
casa conhecera a solidão. Acordava de madrugada, sozinha na cama
triste, os mortos a espreitar de todas as frestas, os ruídos a
assustar de todos os lugares. Amanhecia e continuava só. Não
tinha ânimo de cozinhar. No ventre, uma vida criada à base
de ovo cozido e coca-cola. Dia após dia, semana após semana, ano após ano. Primeiros anos que a solidão transformou em únicos anos, pois a indiferença carregou duas vidas, uma dentro da outra, e as enterrou em outro morro, não muito longe dali. |
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