A
MISERÁVEL
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Sonia
Regina Rocha Rodrigues
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A manhã cinzenta e enevoada espalhava- se fria. úmida, pelo porto. A garoa confundia no mesmo nebuloso cinza céu, terra e mar. Nos limites imprecisos das águas turvas navegavam rebocadores, lanchas, catraias e coloridos barquinhos que quebravam a triste monotonia cinzenta com seus tons vermelhos, amarelos e azuis. O apito da barca chamou os apressados passageiros rampa abaixo. Passada a roleta do terminal do Departamento Hidroviário, as pessoas entravam na plataforma flutuante, uma grande sala de pedra cinzenta, úmida e fria, onde uma faxineira varria ininterruptamente na tentativa inútil de limpar o local. Fumantes jogavam tocos de cigarro ao chão, homens escarravam, crianças urinavam. Ali, no verão, sufocava- se em fétidos vapores; no inverno o vento cortante circulava impiedoso. Uma grade amarela separava a sala de espera do corredor de embarque. A barca atracava. A multidão desfilava, então, pobres homens sujos e suados, mulheres mal ajambradas com crianças de olhar triste ao colo, velhos e moços exibindo o mesmo ar cansado de miséria. Às vezes, uma jovem melhor arrumada, um homem de pasta na mão, pessoas de aspecto bem cuidado. As feições daquela turba variavam do ariano ao cafuzo, em uma riquíssima mestiçagem de traços fisionômicos, cabelos e tipos físicos. Quando a barca esvaziava, o porteiro abria a grade e a nova multidão acorria, acotovelando- se para entrar. Uma mulher desceu ao porão da barca, carregando em um dos braços uma criança recém- nascida e na outra uma sacola vazia. Do lenço amarrado à cabeça caíam cachos amarelados. O vestido mambembe exibia patéticos babados de um rosa duvidoso. Nos pés, sandálias de plástico. A mulher sentou- se no canto próximo à escada, deitando ao colo a pequena carga humana e cobrindo- a quase totalmente com a sacola e a manta. Sentia- se algo tonta, pois não se recuperara completamente do parto. Relembrava as últimas horas. Saíra do Hospital Guilherme Álvaro com a filha ao colo, admirada de não encontrar o marido, que, a trouxera ao hospital e depois nem mesmo viera visitá- las. Ele botara outra mulher dentro do barraco, jogara as coisas dela pela janela e mandava dizer que não a queria de volta, nem à criança. Ao tentar uma explicação, a mulher apanhara. Poucas pessoas desceram ao porão, pois o horário dos trabalhadores já passara e a barca navegava então parcialmente lotada. A travessia através do cais demora cerca de dez minutos, seguindo ao longo dos berços dos cargueiros, fazendo- se ao largo na altura da Bacia do Mercado, onde cruza- se com as catraias, frágeis casquinhas balouçantes como folhas carregadas de formigas humanas. Modificou- se o barulho do motor, primeiro sinal de atracação. Os rapazes precipitaram - se na costumeira exibição de coragem que consiste em saltar antes da hora sobre o abismo das águas, arriscando- se a cair e ser imprensado pela barca contra a amurada. Vendo- se só, a mulher retirou rapidamente um pacote da sacola, colocou em seu lugar a criancinha e fechou o zíper. Aconchegou ao seio o pacote coberto pela manta e ao invés de subir o lance da direita, do lado atracado, subiu o lance da esquerda, voltado para o mar. Lentamente, certificando- se de ser a última retardatária, avançou como se desejasse apreciar a paisagem, parou à beira do corredor como que distraída e soltou a sacola, que afundou no mar. |
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