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HISTÓRIA DE NÓS DOIS - O COMEÇO
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Maria
das Mercês Apóstolo
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Eles se conheceram na época das grandes greves, fins de 79 começo dos anos 80. Ele vinha de militância católica, ela na militância sindical. Nada tinham em comum. Ele de classe média, filho de professor universitário; ela de família operária, sendo ela mesma uma trabalhadora e sindicalista. Ele tinha 19 anos e ela 28. Na primeira vez em que se encontraram ela se apaixonou. No esplendor de sua juventude e beleza ele lhe parecia um deus nórdico, de grandes olhos verdes e flamejante cabeleira louro-dourada. Tinha nas maçãs do rosto deliciosas manchas de sardas que se sobressaiam nos seus momentos de timidez ou raiva. A boca era cheia, encimada por um bigode que se reunia mais abaixo em uma barba ruiva e cerrada que lhe dava o ar de um viking. E ela o chamava de "viking". Dedicava-lhe pequenos poemas produzidos em tardes modorrentas nos quais exaltava os lindos olhos, a face perfeita e a boca doce. Teceu em torno dele uma gaze de amor apaixonado, feita de ironias, risinhos, histórias e o fascínio de sua mente ágil e inquieta. Ela já tinha um passado, tinha um filho, um casamento desmanchado e alguns amantes deixados para trás. Ele recém cruzara a linha de sombra que dividia o mundo dos adultos e o da adolescência. E essa linha sombria às vezes descia sobre a face dele, dando-lhe um ar pensativo, quebrando-lhe os olhos com tristeza e leve cansaço, como se soubesse que não poderia rever ou reaver o que deixara para trás. Mas logo ele se animava, pois que era feito de risos e rosas e buscava imprimir naquele relacionamento tão desigual a marcha leve e dançante dos amantes felizes. E ela só se sentia feliz por reflexo. À menor sombra seu sol se escondia e o que seria um dia pleno e glorioso se transformava em tarde borrascosa e cheia de trovões. Era instável como o clima dos trópicos, com desconhecidas e vibrantes emoções à flor da pele, torvelinhos de sensações nas pontas dos nervos constantemente retesados. Ele era seu lago manso, a maré branda onde descansava embalada pelo rumorejar suave dos sussurros dele, acalentada e acarinhada pelos quentes beijos. Entretanto, às vezes ela se perguntava por quanto tempo ele a amaria... Será que mudaria de sentimentos ao ficar mais velho? E ela, mudaria de aparência, ficaria feia e gorda e ele não a quereria mais? E quanto mais olhava para o rosto de efebo grego ou de anjo renascentista que era ele, mais ela se angustiava por estar perto de tanta beleza. Sentia-se feia e comum, uma barata perto de um beija-flor. Achava-se velha para ele e no fundo do coração temia que ele por sua vez, se apaixonasse por alguém, como ela se apaixonara por ele. E não era só a questão da beleza. Era também a calma, a mansa maneira como ele deslizava pela vida, a forma como encantava a todos ao seu redor o que a intrigava, dava-lhe inveja e a enchia de cisma e rancor. Pois ele era amado por muitas pessoas além dela; seu sorriso cativava; sua maneira de ser, gentil e suave, predispunha a seu favor e de todo o seu ser se desprendia um encanto ao qual, poucos ficavam imunes. E ainda por cima era tão belo... Isso a mortificava, entristecia, não se julgava digna, merecedora daquela dádiva. Desenvolveu tal grau de ansiedade que passou a ter sonhos recorrentes com ele entrando na igreja, enlaçado à outra pessoa que não ela. Revistava suas coisas, cheirava suas roupas sempre buscando um perfume estranho, uma mancha qualquer que lhe desse a certeza daquilo que seu coração suspeitava. Tinha a obsessão da entrega total. Tal como ela pensava nele vinte e quatro horas, ela também esperava que ele lhe dedicasse atenção contínua, constante e sem esmorecimento. Qualquer desvio de foco, já a deixava num frenesi de medo, tremor, garganta seca e mãos suando. Tiveram um filho. E isso longe de os aproximar, os afastou. Ele sentiu o peso da paternidade e da família, a opressão daquele afeto extremo, o fardo de realizar a felicidade daqueles dois seres, que aparentemente só respiravam por ele. E foi se escapando... Passou a viajar a trabalho, intensamente, ficando longos dias afastado, respirando a solidão e a preciosa liberdade de ser quem era, longe das obrigações e dos carinhos forçados. Pois que agora, os carinhos que proporcionava lhe pareciam mecânicos, sem alegria e sem prazer. E assim ele foi deslizando para fora da vida dela, suavemente, gradativamente, inexoravelmente... e quando ela se deu conta já era tarde. Brigaram feio uma vez, pois ela descobriu que ele a havia traído em uma dessas viagens. Ficou profundamente ferida, pois a ausência durara mais de três meses, nos quais ela amargara uma solidão terrível, plena de saudades, angústias, peso no coração e dores nas costas pelas noites mal dormidas. E quando ele regressou, a primeira coisa que fez foi contar-lhe sobre a sua falta, não para vangloriar-se, claro que não, ele era um homem digno. Mas para acalmar seu próprio anseio, seu sentimento de culpa, quem sabe. Receoso, talvez de que ela descobrisse por outras vias. E então lhe contou e o mundo veio abaixo. Ela reagiu de forma tão intensa e desesperada que ele ficou sem reação. Sentiu-se tolhido e quase a submergir nas ondas profundas e negras daquele sofrimento sem controle e sem consolo. Assustou-se com a intensidade daquela fúria feita de gritos e gemidos, choro convulso e estertores agônicos, e muito no seu íntimo insinuou-se a idéia de que aquilo não era para si. Ah! Não. Aquela emoção descabelada, aquele abismo de sentimentos escuros e pegajosos, aquela loucura, vista de relance como através da fresta de uma porta, encheu-o de puro terror. Começou então a planejar sua fuga. Nada claro ainda, evidentemente. Apenas a sensação de que deveria correr para salvar-se. Buscar um lugar seguro onde ficasse fora do alcance daquelas emoções descontroladas. E ela totalmente absorta no seu sentir, quem sabe até extraindo algum raro e perverso prazer do temor que via no rosto dele, nada percebeu do seu retraimento. Devia ter sido mais esperta. Ele não lhe proporcionou o menor consolo, não se justificou e nem pediu perdão, não tentou fazer-lhe espontaneamente nenhum agrado ou carinho. Ficou apenas olhando com aqueles olhos verdes, abertos e espantados no fundo dos quais pulsava uma pequenina chama de ... desgosto, desprezo, desprazer, qualquer coisa menos amor. Ela nada viu. Mergulhara em águas fundas e lutava para voltar à tona e a briga desenrolou-se noite adentro em forma de monólogo, no qual apenas ela atuava, para uma platéia composta de um único espectador. Tiveram muitas outras brigas desse teor. E de cada vez os olhos dele se esverdeavam mais, abertos em janelas pelas quais passavam vento e brisa, vento e brisa... Até que ela começou a agredi-lo para ver se lhe arrancava alguma reação. Bateu nele uma vez, pegando-o desprevenido e ele saltou ferido, queimado pelo toque e pela agressão. Ela percebeu então que tinha encontrado uma maneira de ir ao seu encontro lá naquele mundo para onde ele ia quando a fitava de olhos tão verdes e tão abertos. Bateu-lhe uma segunda vez, mas ele já estava preparado e revidou-lhe com dupla violência, marcando os cinco dedos na face dela, que permaneceu emaciada, roxa e inchada durante uma semana. Depois disso, ele se refugiou de vez por trás das janelas esverdeadas, fitando-a de longe como se por detrás de cortinas de gaze e vendo-a tal como era: uma louca, uma fúria ciumenta, uma gárgula que vertia fel em vez de água. Tinham momentos de trégua, quando o carinho aflorava e os corpos se reconheciam na dança do amor, e nessas ocasiões ela pensava que o tinha de volta, que ele regressara e que tudo poderia ser esquecido e eles seriam felizes outra vez. Mas para ele eram apenas pequenas fugas, sorrateiras e fugidias, apenas o hábito e o costume de amar aquele corpo, tocar aquela carne, cheirar aquela pele que agora tão pouco lhe significava. E assim eles foram resvalando, cada um para um lado. Ela engravidou mais algumas vezes e em todas elas ele se recusou a deixa-la levar adiante. Não que a obrigasse a abortar, nada disso, ela ainda era senhora de seu corpo e ele um cavalheiro que jamais subjugaria uma mulher. Mas seu alheamento era tal, seu desinteresse tão patente que ela se obrigava a ir fazer o aborto na esperança de que essa atitude o comovesse e lhe mostrasse o quanto ela o amava e levava em consideração seus sentimentos. Ele não ligava a mínima se ela o fazia ou não. Nem mesmo se interessava pelos aspectos clínicos da coisa, ela ia sozinha ou com amigas e ele mal tomava conhecimento. Até que no último, desconfiado talvez da persistência com que ela teimava em engravidar, ele fez uma vasectomia. Ela sentia acercarem-se de si longos silêncios e ausências, a vida se manifestando muito longe como se estivesse envolvida em uma grande nuvem de algodão, embalada para uma longa viagem. Uma viagem sem fim. Tinha a intuição de que algo grande estava a preparar-se, algo que a engoliria e a cuspiria numa praia selvagem, nua e sem água, como um náufrago, sem esperança alguma de retornar. Mas tolhida de medo, mal conseguia discernir o que viria. E o que afinal veio foi tudo o que mais temia, pior do que o que mais temia e a engolfou como uma gigantesca onda, levantou-a do chão e a atirou de volta com violência e premeditação. Em uma última briga ele saiu de casa e voltou somente para buscar a mala. No dia da partida vendo-o jogar na mala descuidadamente as camisas e as meias ela lhe implorou. Revoltada e ferida, pois se considerava a vítima, a esposa leal atraiçoada tantas e tantas vezes, mesmo assim ela lhe implorou que ficasse, que não a deixasse, pois sem ele, ela tinha certeza que morreria. Ele apenas abanava a cabeça, ligeiramente irritado, impaciente como que a tentar se livrar de um inseto importuno. Dirigiu-se para a porta, ela postou-se na frente como a tentar impedi-lo. Ele com um só braço, o outro carregando a mala, empurrou-a com branda violência, uma meia brutalidade, se é que isso é possível e afastou-a para um lado, cruzando o umbral e desaparecendo na noite, desaparecendo de sua vida, do seu leito, da sua casa para nunca mais voltar. Ah, não é verdade. Ele voltou sim, à casa dela. Muitas outras vezes, como pai, como inimigo, como antagonista, mas jamais como o amante, o companheiro e o amado que fora. Como inimigo ele voltou muito em breve. Trouxe-lhe a noticia de que iria levar o filho para morar com ele e a nova companheira que tinha agora. Estava tentando reconstruir a vida, ele dizia. E você deve fazer o mesmo. Ela aferrou-se ao filho tenazmente. Era tudo o que lhe restava dele. Era além do mais o pretexto para vê-lo nas raras ocasiões em que ele o visitava, pois ele preferia que o filho viajasse para vê-lo a ter que se encontrar com ela. E até esta batalha tão elementar ela perdeu. O filho preferiu o pai a ter que viver com aquela mulher tão sombria, tão devastada, na qual mal podia reconhecer a mãe. Ele voltou ainda uma vez, para anunciar-lhe que ia casar-se. Uma crueldade segundo ela. Por que tinha que lhe anunciar? Era para exibir-se talvez? Mostrar-lhe que tudo estava definitivamente, profundamente enterrado e deixado para trás? Para ela iniciou-se então uma nova estrada, que agora deveria trilhar sozinha. E ela que a vida inteira tão só fora, não se sentia com forças para continuar. Fraquejou, mergulhou de novo nas ondas negras de suas emoções, sem vontade alguma de emergir. Enovelada nas dobras de sua autopiedade queria apenas dormir um longo sono, que tinha como núcleo o sonho de acordar e tê-lo ali ao pé de si, comovido e morto de culpa por tê-la magoado tanto. E então ela o perdoava, apertava nos braços aquele peito amado, sentindo as batidas alucinadas do coração em tumulto, as lágrimas correndo de uma face à outra, misturando-se como os fluidos sexuais deles tantas vezes fizeram. Mas os dias passavam, os meses passavam, até os anos passaram e ele não voltou. Ela então teceu outro sonho, o da mulher vencedora, realizada, auto-suficiente, que lhe apresentaria em algum momento, para mostrar a ele o que havia perdido. E nesse sonho ele rastejava aos pés dela, implorava para voltar e ela com a ponta do sapato o afastava delicadamente, e dizia que não tinha tempo para isso. Estava muito bem e feliz do jeito que estava. Esse sonho a envolveu e alimentou por quinze longos, solitários e vazios anos, até que um dia sem mais nem menos, sorrateiramente tal como os sonhos costumam fazer, explodiu, desapareceu sem deixar sequer fumaça e ela acordou. |
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