A
IMAGEM DA JANELA
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Keila
Abreu
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Lúcia postou-se diante da janela de seu quarto. Em outros tempos a janela era o portal para o céu. Acordava e corria para abrir as cortinas. Era a coisa mais importante do dia. Seu ritual sagrado: acordar, botar os chinelos e abrir as cortinas. Acordava sempre aos primeiros raios do sol e punha-se em frente à janela a contemplar o céu. E assim também era o fim da tarde. Sentada em sua poltrona confortável, ficava observando a mudança dos tons no horizonte. Seu quarto era amplo, e havia duas janelas grandes, inteiramente em vidro, uma de cada lado e, assim, podia ver o céu ao amanhecer e ao anoitecer. E sua vida valia a pena somente por isso. Não havia outra coisa que gostasse de fazer. Apenas admirava o sol ao nascer e ao se pôr. Muitas vezes a noite a flagrava ali, imóvel como uma boneca de gesso, olhando a paisagem com calma, sempre com a mesma admiração e surpresa da primeira vez. Os últimos anos haviam sido muito difíceis, pois sua mãe foi levada de casa após um infarto fulminante. Não lhe permitiram acompanhar o cortejo, pois temiam que sua estranha calma desaguasse numa crise de nervos na hora do sepultamento. Não entendia o que significavam as palavras do irmão, mas repetiu maquinalmente, durante meses, a frase dita por ele ao sair de casa: "Ela não vai agüentar a derradeira despedida". Ficava em sua janela repetindo as palavras somente para si. E ria dessas palavras. E a mãe nunca mais voltou depois que os homens de branco a levaram no carro grande. E Lúcia repetia as palavras do irmão, chorando a falta da mãe, sem compreender que ela jamais voltaria. Sua mãe era um anjo-da-guarda, que cuidava de sua vida com muita dedicação e afeto. Era ela quem vinha fechar as cortinas do quarto depois que Lúcia dormia e também quem lhe beijava com carinho antes de apagar a luz suave do abajur. Depois que aqueles homens a levaram, ninguém mais fechava as cortinas e Lúcia demorava a dormir, pois o abajur ficava aceso a noite inteira. O pai era um homem muito grave. Passava horas ensimesmado, trancado na biblioteca, e era com muita dificuldade que ensaiava travar algum diálogo. Mas nunca dirigia a palavra a Lúcia. A falta de equilíbrio da filha o fazia perder a paciência com facilidade e ele não conseguia deixar de ser agressivo. Delegou a vida da moça aos cuidados de uma senhora muito bondosa, de nome Nanci. Essa mulher falava muito e sorria com algum barulho. Suas gargalhadas, porém, ecoavam sozinhas pelos cômodos vazios daquela casa enorme. Lúcia não entendia aqueles sorrisos, mas ensaiava sempre uma risada. Um dia as risadas de Lúcia viraram uma crise histérica e ela começou a gritar pela casa, chamando a mãe. Chamaram o médico e ela dormiu até o outro dia. Quando acordou não se lembrava de mais nada. O pai de Lúcia ficou muito irritado com aquela história e Nanci foi proibida de sorrir com aquela empolgação de antes e não lhe era permitido falar nada além do essencial. Não suportou muito tempo, pediu demissão e foi embora sem despedir-se. Lúcia chorou a ausência de sua companheira com uma mágoa ainda maior do que o choro pela falta da mãe. Era o segundo abandono e ela sabia que ninguém viria apagar a luz e nem dar-lhe um beijo com carinho antes do sono chegar. Ninguém lhe daria um sorriso, nem contaria histórias. Por alguns dias, menos de uma semana certamente, Lúcia ficou sem cuidados e sem qualquer atenção. Nesses dias faltou-lhe até banho. A comida era deixada no quarto pelo irmão, que sempre andava às pressas, resolvendo todos os problemas da casa, e também os de sua vida particular. Passou todos os dias diante da janela, pois ninguém a levava aos passeios pelo jardim. A cozinheira, num desses dias, subiu ao quarto de Lúcia e logo saiu horrorizada, pois a comida deixada pelo irmão não havia sido tocada e jazia num canto daquele aposento, infestada de vermes. Depois do assombro, voltou ao quarto e compadeceu-se da moça. Lembrou-se de todos os sacrifícios da mãe, antes de morrer. Pensou no quanto era importante para aquela mulher o bem-estar daquela menina. Ficou olhando comovida para sua figura imóvel, naquela cadeira o dia inteiro, sem comer, sem dormir direito. Tinha que fazer algo em seu favor. Com muito cuidado foi-se chegando e sorrindo, a fim de ao menos trocar-lhe as roupas, pois naqueles dias fazia muito calor. Mas Lúcia era como uma criança e, por não reconhecer aquela mulher, ficou muito nervosa e gritou como se estivesse sendo agredida. E o médico foi chamado. O pai de Lúcia novamente mostrou-se irritado e brigou com a empregada de forma tão agressiva que ela não parou de chorar por três dias. O irmão contratou uma nova enfermeira e Lúcia não teve problemas em obedecê-la. Havia muita docilidade nos gestos e no tom de voz daquela mulher de pele morena e sorriso afetuoso. Lúcia reagia bem e portava-se como uma garotinha meiga e dócil. Em poucos dias voltou à sua rotina de passeios e contemplações da paisagem. Foi num sábado, dia em que a nova enfermeira teve que ausentar-se, que tudo aconteceu. O irmão de Lúcia teve um problema muito sério e não pôde chegar cedo para acompanhar a irmã em seu passeio pelo jardim. O dia estava chuvoso e Lúcia cansou-se de ficar sentada em frente à janela. Em dias assim, a enfermeira passeava com ela pela casa, iam até a biblioteca e ao salão de jogos. Lúcia costumava achar divertido regar as plantas na varanda e colher algumas flores pequenas para enfeitar a mesinha de cabeceira. Mas ninguém veio e ela cansou-se da paisagem cinzenta na janela. Desceu sozinha e correu para a porta da frente. Lançou-se no jardim e desatou a cantar e a rodopiar sob as gotas grossas. Na sua dança desvairada sorria com muita alegria e atirava-se no chão. Levantava e colocava-se a rodopiar novamente, gritando seu sorriso. Um trovão muito forte a assustou e ela começou a chorar e a gritar com desespero. A expressão de seu rosto era de terror. Não sabia voltar para casa, embora estivesse exatamente em frente à porta. Simplesmente não via nada à sua frente. Não via a casa. Não atinava com nada. Seu desespero era o de uma criança perdida, alucinada, em meio a uma multidão de estranhos. Lúcia via feras desfiguradas a rugirem em sua direção e gritava ainda mais forte. Corria de um lado para outro e caía na lama. Chorava e gritava por sua mãe. E chamava Nanci. E elas não vinham. Sonhos ruins durante a noite. Choros. Elas sempre apareciam na escuridão para abraçá-la e acendiam o abajur para protegê-la. E ninguém veio em seu socorro. Ela gritava com dificuldade e os sons guturais que emitia chamaram a atenção do velho pai que, ouvindo aquela algazarra, saiu da biblioteca com o peso de sua raiva enfadada. Abriu a porta com estrondo: -- Entre logo, criatura retardada! O que faz aí, estorvo da minha vida? Cadê o irresponsável do seu irmão, que devia estar aqui para tratar dos seus ataques? Lúcia não enxergava o pai. Em sua sandice, viu mais uma fera e gritava aterrorizada. Chorava com muito desespero. Arranhava seu próprio rosto e também seu colo branco, numa tentativa de livrar-se daqueles monstros. Feriu-se e gritava de dor. Seu pai ficou ainda mais impaciente e, bradando impropérios com sua voz rouca, puxou-a pelos cabelos pretos e compridos. Gritava com muita fúria, dizia que ela era um castigo e que, por causa dela, a mãe havia morrido. Lúcia, que, no começo daquele ataque do pai, debatia-se na tentativa de fuga, ficou paralisada. Sentia a dor em cada fio de cabelo. Sentia a dor escorrendo com o sangue que brotava fácil em seus cortes. Mas sentia ainda mais medo do que dor. Foi puxada pelos cabelos e jogada em seu quarto. O homem entrou no quarto para fechar as cortinas. A idéia era deixá-la ali mesmo, molhada, pregada ao chão, e no escuro. Isso, na sua desvairada mente, serviria como lição. Decerto, após esse castigo, ela pararia com aquelas besteiras. Não fossem os mimos da mãe e aquela menina seria menos caprichosa. Era o pensamento dele. Quando Lúcia o avistou fechando as cortinas, retomou suas forças e, num súbito de desespero, lançou-se sobre ele com voracidade. Era proibido fechar as cortinas de seu quarto durante o dia. Ele estava a roubar-lhe o céu. E ela o arranhava com muita fúria. Sob seus olhos ainda era um monstro. Estabeleceu-se uma luta diante da janela. O pai, porém, sequer sentia os golpes que a filha tentava desferir-lhe. Ria do desatino daquela pobre figura miserável, com aqueles molambos molhados, toda rasgada, e aquele olhar perdido no vazio. E foi a dissimular uma estrondosa gargalhada que ele perdeu o equilíbrio e, com alguma facilidade, Lúcia conseguiu empurrá-lo. A força da raiva e do medo de Lúcia, juntamente como peso daquele homem, o fizeram atravessar o vidro. A janela era alta. Depois da queda, horas depois, o irmão chegou e a encontrou ali no quarto, contemplando a paisagem através da janela. Ela não percebeu o corpo do pai e nem o desespero do rapaz. Ficou parada. Roupas rasgadas, corpo molhado, feridas sangrando, sentada em sua poltrona confortável. Contemplava a janela quebrada sem incomodar-se com o frio que entrava pelo buraco deixado no vidro. Depois desse dia não viu mais o pai. Sua ausência, porém, não lhe incomodava. Agora, depois de alguns dias, estava ali, diante de sua janela, de cortinas abertas, observando, maravilhada, o tom avermelhado do céu, como se nunca o tivesse visto daquela cor. |
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