DE
VOLTA À VIDA
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João
Rodrigues
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Chegou em casa às quatro da manhã e a mulher remexeu-se na cama. Sem esperar nem ao menos Aguiar entrar direito no quarto, foi logo reclamando: - Isso são horas de chegar em casa, Aguiar? Aguiar nem esquentou. Tirou a roupa e foi tomar um banho, enquanto a mulher, irritada, enchia o saco dele. - E você nem responde? Quatro horas, alta madrugada, e nem uma satisfação! Cansado, ele nem dava atenção. Queria tomar um banho, relaxar e poder dormir até mais tarde, apenas isso. Depois que o único filho morrera, ele ficara assim, sem muito ânimo para a vida; mas em momento algum relaxara a ponto de deixar algo faltar em casa. As contas estavam todas pagas. O carro estava em ordem, tudo perfeito. Ou quase tudo. Não fosse a megera que tinha dentro de casa, feito uma jibóia, hibernando dia e noite, escorada em uma pensão herdada do pai, que fora da Marinha. Por isso nunca trabalhara fora. Vivia o dia todo vendo televisão e metendo a língua na vida dos vizinhos. E, não satisfeita, ainda pentelhava a vida do marido que andava cheio de trabalho, com prazos estourando e um chefe filho-da-puta que lhe perturbava o dia todo. - Responde, Aguiar, onde você estava? Nem precisa. Boates. Claro! Por isso foi direto tomar banho, né. Aguiar nada respondia. Ultimamente a imagem do filho não lhe saía da cabeça. Era filho do primeiro casamento, ainda bem. Ter tido um filho com uma peste feito Margarida (com nome de flor, mas com espinhos de cactos e veneno de cobra) teria sido uma tragédia, coisa que não desejaria nem pra sua segunda sogra. Continuava lá, no banho, tentando não ouvir a voz da mulher que lhe torrava os miolos. Ele havia chegado apenas quinze minutos além do normal. Não precisava daquele inferno todo, mas Margarida tinha prazer em perturbá-lo, azucriná-lo... ela era daquelas mulheres que zumbem durante horas, que não se cala até tirar alguém do sério, levar até a linha tênue entre a sanidade e a loucura; e depois de fazer tudo isso ainda dizia "Você não tem paciência!", "O que foi que eu fiz?" e outras coisas que dizem todas as pessoas que vivem pastando, feito uma ameba, que vieram ao mundo apenas para cumprir uma missão dada pelo Satanás. Assim era Margarida. Se não tivesse vindo ao mundo não faria falta a ninguém, pelo contrário, faria a felicidade de muitos. Mas Aguiar cuspira na cruz quando moleque. Sim, talvez tivesse xingado algum bispo, jogado pedras na igreja, roubado coroas de flores do cemitério... coisas do tipo. Maldita hora em que conhecera aquela mulher! Saiu
do banheiro, foi até o som e colocou a "Nona Sinfonia"
de Beethoven. Ela odiava. Depois, serviu uma dose de uísque, acendeu
um Havana, sentou-se no sofá e cruzou as pernas. Aguiar relaxava. Nem parecia ter mais alguém naquela casa. Deu uma mexida no gelo, com o dedo, e serviu mais uma dose. Foi até a estante e pegou O marido humilhado, de Nelson Rodrigues. Ele não conhecera Margarida, azar dele. Teria dado uma boa peça. Aquela mulher tinha tudo para ser mais uma estrela das belas histórias de Nelson. Margarida continuava reclamando, xingando, gritando... ele nem ouvia mais direito. Estava passado, transtornado, enlouquecido. Não agüentava mais aquela desgraça. A morte seria a melhor coisa que poderia acontecer. Pela primeira vez na vida sorria ao pensar no filho morto. Ele não precisava ter que viver ao lado de uma Margarida qualquer. E chorou. Foi até o armário, pegou a Pistola, conferiu se estava carregada e apontou para a própria cabeça. Margarida olhava pra ele, sorrindo. Era isso que ela queria. Mas o mundo não precisava dela. Ele não podia permitir que outro homem trilhasse o destino dele. Virou-se para a mulher e atirou no meio da testa dela, que caiu sobre a cama, sem vida, feito um farrapo humano. |
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