Tema 181 - Farrapo Humano
BIOGRAFIA
CATUÊ
João Gilberto Engelmann

No tempo florido da melhor estação, aí estão ambos, sentados inertes no recôndito da praça. Pernas curvadas juntas, rente uma à outra, como que xifópagos interligados. Estão tímidos em demasia. Não brota nenhuma coragem e, só do rosto, verte algum sorriso envergonhado. O mundo que circunda e exige homens objetivos e destemidos, afoitos e ambiciosos, quer parar de existir para qualquer um dos dois. Esse mundo não agüenta mais ser assim; aquilo que se teme e tem-se medo, assim, simultaneamente e confuso, como aquelas duas mentes tão bem compenetradas naquela contemplação medida, regrada pela prudência e desvirtuada pelo som frenético de um cardíaco ansioso.

Uma vontade de recitar sonetos escapa e o silêncio, aquele preponderante inoportuno, raja como que o mudo tempo entre a morte do broto e vida da flor. Depois que morrem os brotos, algo novo sempre vem com magia de festa e rompe o encerrado e traz vida nova. Assim aconteceu naquela madrugada ao redor da pracinha. Muitas flores. Muitas mortes de brotos anunciadas no coral dos cricrilantes grilos de serestas. E, por muito pouco, uma mão ávida não rompe a monotonia e atraca no porto seguro e quente de outra mão ansiosa. As rosas até balançam na expectativa. Os grilos cessam aquele cricrilar ofegante. Tudo pára. Tudo se curva diante do instante. Tudo é espera. A mão retrai; o fôlego se intensifica e o afã iminente deve esperar mais para ser contido. Os longos dedos finos acomodam-se no quente do paletó cinza. Impacientes, representam o movimento que o coração faz para não gritar de amor. Saem silenciosos. Um não diz até mais. O outro quer dizer e silencia.

Até Marieva ouviu os gritos naquela manhã. Altos e prolongados, diziam algo como que: levante menino!,numa narrativa que não alude a verdadeira intensidade daquele som estrondoso. Foram três, segundo o que Marieva cochichava no almoço ao marido. Alvício trabalhava numa distribuidora de gás; Marieva era dona de casa. Uma vez tentou a aventura de se auto-prover. Numa época em que o cenário das mulheres donas de casa começava a cair no descrédito. Pensou que seria bom um compromisso mais formal e um dinheiro mais independente, sem aquelas investidas ao marido onde se pede tudo, desde o trocado para o mercado até para aquelas congas estilos Young que alguma vitrine, não sabia mais qual, exibia junto com a nova coleção primavera/verão.

A noite passada tinha sido não muito boa. Teve insônia e nem mesmo o bom chá de Stevia conseguira dar jeito. Adormeceu lá pela madrugada. Cedo, acordada pelos gritos da vizinha das rosas fartas, como a vila anunciava aos visitantes o espetáculos das rosas de dona Sereta Gusmão, ainda se sentia cansada.

Na verdade, Sereta Balbuena Tasca Gusmão; ou, dona Sere, para os dali mesmo. Ainda ontem à noite, enquanto não dormia, pensava o quanto feliz era dona Sere. Bem casada tinha dois filhos exuberantes. Ambos estudavam e nunca desmereceram o crédito dos pais. Meleu era o mais velho. Menino bem afeiçoado e de boa estima. Não fumava e bebia pouco. Cursava matemática e era namorador. Catuê era o mais novo; caçula mais querido pela mãe. Cursava direito pela manhã e à tarde trabalhava com o pai na antiga loja de ferragens herdada do avô.Tinha com a mãe uma relação mais afincada do que com o pai. Era sereno. Era o homem da casa que ajudava na louça, na roupa. Era o caçula querido das tarefas caseiras. Nunca havia namorado. Contrariamente ao irmão, que contando com Crista, tivera cerca de dez a quinze namoradas, ele não se sentia preparado para relacionamentos assim. Namoraria uma só vez, pensava. Depois casaria e seria feliz. A mãe apoiava. Menino de juízo que pensa nos estudos e trabalho antes de qualquer coisa, confiava ao marido a dona Sere. O pai não sabia ao certo. Gostava da postura do filho ao mesmo tempo que sentia uma necessidade de ouvir dos amigos de Catuê o quanto ele puxara ao pai, muito namorador. Nunca ouvira relatos assim. Os amigos de Catuê também não são muito de falar; contentava-se.

Catuê andou até o outro lado da praça sem olhar para traz. Tinha no marejado dos olhos um bom motivo para voltar-se. Para vê-lo embaçado, andando como que se tremesse na vontade de correr, sem que as pernas também quisessem. O distanciar-se era como que morrer um pouco a mais. Era como que ir para onde todas as forças não quisessem ir. Tormento que o coração não aceita e que a razão tenta, infrutiferamente, consolar. No peito sentia a velha mágoa de quem sabe que não pode ser, mas que, perdido em algum lugar da mente, há uma força minúscula de otimismo atônito. Sabia que choraria o suficiente para morrer por dentro. Tinha consciência de que tudo o que passa diante dos olhos e é belo só é belo pra quem tem felicidade. Também o encanto das rosas da pracinha já não fazia diferença. Que tudo fosse cinza, afinal, e nada estaria diferente.

Nem sentiu quando espinhos atracaram-se em seu jeans, passado para a ocasião, deixando marcas na calça e na pele clara. Não sentiu que seu coração batesse. Não faria diferença caso parasse; talvez uma dor a menos. Talvez o que restasse mesmo fosse a morte de um corpo do qual a alma fugira, fora levada embora por outra. E também já o tempo não fazia diferença. Também as horas, sorrateiras anunciadoras da noite vindoura, que o mandavam que fosse para casa, não exerciam mais nenhuma força. Só o que incomodava era aquele calor úmido que escorria pelo rosto e o faziam ver o mundo com mais dor. Mundo embaçado. Mundo louco onde quem se gosta precisa viver distante.

- Ande menino, já são quase sete horas; você nunca foi de se atrasar!!- anuncia aos quatro ventos a Dona Seresta, quase que acordando todo o quarteirão que decidira dormir um tanto mais. À resposta de um atônito hã... estronda mais duas vezes até que escuta passos no quarto. Resmunga ao marido que, numa calma típica, toma seu café:

- Que será que se teve por aqui; Catuê não é de se atrasar!

- Ora, deixe o menino, Sere; deve ter saído com alguma garota e chegado tarde. Ri ironicamente o pai.

- Até parece que você não conhece nosso filho; chegar tarde quando tem aula no outro dia; ainda mais com garotas...

Tadeu franzi a testa em protesto e exclama:

- Aff. Como assim ainda mais com garotas? Arre Sere... - Ela, esperta, o atravessa:

- Nada não, pai, nada não, e se apresse você também antes que acabe perdendo a hora de abrir a loja.- Dá as costas em direção à pia para entreter-se com alguma louça suja.

Dona Seresta era a que melhor compreendia as atitudes do filho; a única, talvez. Sabia que,se ele havia se atrasado, algo deveria ter acontecido para isso. Talvez já tivera compreendido o filho quando havia dito que amor só se tem um, e uma vez. Ao certo, não sabia se ele se perdia de amor por alguém. Falaria com o filho depois do almoço. Agora, ele já estava o suficientemente atrasado, tanto que nem o viu sair.

Não sabe como, mas as pernas o levaram a visitar toda a cidade. Vagou como que um zumbi por todo lado até vê-se em frente de casa. Já não chorava mais. O pranto cessou e a dor, não mais lubrificada, parecia ainda mais cruel. Cruel ao ponto de o fazer sumir para sempre. Imaginava que, de hoje em diante, sairia por ruas e elas estariam pintadas em cinza e preto. Que quando de novo chorasse, suas lágrimas misturariam as duas cores e tudo viraria um turvo sem forma. Parou em frente ao portão de casa. Hesitou. Àquela hora, tarde como era, estava ali fora do tempo. Não tivera visto passá-las; todos os segundos foram incontáveis porque não os percebeu. Entrou em casa e pô-se à cama. Como vômito descontrolado, as lágrimas beiravam aos olhos. Sentiu rolar. Adormeceu às lágrimas e, decerto, choraria em sonho.

Ao abrir os olhos, já era dia, e o mundo ainda existia; e a dor, e a sujeira de si, e as lágrimas secas, e o pesar eterno. Gritos o chamam à vida. Ouve os apelos da mãe para que acorde. Nunca mais irá acordar para a vida, pensa. Joga-se num banho e saí vestido para aula. Sai correndo pela calçada. Hoje terá aula. Pelo caminho lembrava os versos simples ouvidos num dia feliz:

Tenho para mim um amor que é eterno,
E que seja, em traços de felicidade,
Que é também um eterno encontro comigo,
Que sempre me acho em ti embrenhado.

Uma recordação aflora à mente; e já é hora de seguir.

Meio dia e Catuê não havia chegado como de costume. Meleu já estava aposto à mesa. E o pai aposto à mesa. Sob protesto da mãe não haviam almoçado. E Catuê não chega.

Catuê já não chorava mais. Hoje o dia está mais fatigante. O calor é mais cansativo e o sol mais desgraçadamente intenso. E onde está o primaveril? E onde se esconde o recitar versos? Anda por entre os carros; desatento como um senil no clímax de seu desvaire. Sente que o corpo reclama cuidado e que a mente quer sossego. Mas ambos que esperem; o tempo é remédio de longo efeito e só chega espontâneo. Tempo é segredo que alguém escondeu e que Catuê não quer procurar.

Lembra de Sísilo quando dizia:

O meu tempo ninguém conhece,
Sendo meu, ele é eterno e duro,
Faz-me perecer e ainda assim quere-lo,
Meu tempo me põe no afã de medir o meu fim.

E se morro, também assim o tempo,
Esse algoz de quem precisa esperar,
Queria ser o homem que não te é refém, maldito
Que te mata antes de acabar-se só.

Quem dera que, pelo menos, o espaço de sua vida descesse do céu e lhe desse um alento, um lugar para repousar a alma. Mas o espaço combinou com o tempo que seriam, os dois, seu carrasco, e já não sabia mais aonde ir. O mundo não precisaria continuar existindo, mas eis que aí estava, doído e sem piedade. Inoportuno e sem um cantinho onde não fosse tão real, que se pudesse fugir às circunstâncias e vagar sem a companhia do pensamento. Porque pensar trazia à memória tudo o que nunca mais quereria saber. Não mais pensaria. Eis então que já não era mais de seu controle mandar nas idéias que, cada vez mais, povoavam-lhe a mente. Pensava sem controle e aquilo lhe parecia a coisa mais ruim que a consciência, contraditória uma vez fugida de controle, inventara. Mente que o fazia saber que tudo agora estaria e seria diferente; que o fazia conhecer seu destino de homem desolado, homem que anda sobre membros que nem sabem de seu sofrimento. Era dor que lhe rasgava o peito; então, os olhos compadecidos, como que leitores do que existe na alma, falaram por seu espírito e tudo novamente se torna ofuscado e disforme. Eis que o descontrole já não é mais só da mente, mas o marejado dos olhos também o condena a um completo abandono de si e à completa desregra.

Sobre os teus olhos temo em prosa e verso,
Porque meu pranto já é lira e minha voz poesia,
Todos os sons eu já não os escuto mais,
Só meus soluços que embalam minha desgraça.

Tal como pensamentos feitos na hora, também os versos mais tristes e antigos lhe vêem à mente. E que contam sobre seu estado de espírito. A mãe não entenderia sua decisão, e com ela mais ninguém. O mundo de carne e osso não saberia interpretar seu grito último de dor; mas eis que o grito último de dor nunca se bem reflete, e é no ímpeto da mais desvirtuada dor que se decide. Passos não o levam o suficientemente rápido para onde deseja ir. E então, o que temia acontece: o mundo real vê-se pintado em cinza e preto. Suas lágrimas, todas e intensas, misturam o duo coral e tudo está irremediavelmente turvo e manchado, como o sangue que escorre pela rua. Os passos ineficazes são deixados para trás e as asas lhe são melhor condutor. E ele sobe. Até não mais ser visto.

- Mãe!!

- Meleu, o que foi??

- O Catuê, mãe, o Catuê...

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