DONA
MATILDE TEM FILHA NA EUROPA
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E.
Rohde
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Dona Matilde deu duas voltas na chave, depois girou a maçaneta e empurrou para ter certeza de que estava bem fechada. Era uma casa modesta, não tinha nada de valor dentro, mas era tudo o que ela tinha. A casa e a filha. Deixava uma para ir salvar a outra. A filha na Europa já há dois anos. Ontem mesmo caiu nas mãos de Dona Matilde um folheto da Polícia Federal: estão traficando mulheres para a prostituição no estrangeiro. Será que a filha...? Não esperou resposta. Juntou de dinheiro tudo o que tinha, tomou emprestado o que conseguiu tomar, pôs umas poucas roupas na mala, na velha mala de visitar parentes, e foi buscar a filha. No aeroporto, às sete da manhã, pediu: - Moço, uma passagem prá Milão, fazendo o favor. O funcionário reconheceu estar diante de uma principiante e explicou que não era bem assim, que precisava reservar, que precisava passaporte: - Volte outro dia. Ela comprou a passagem assim mesmo, para hoje à noite, partindo às dezoito e quinze, via São Paulo. Passagem nas mãos, voltou para o centro. Na polícia, pediu: - Quero tirar passaporte. O funcionário explicou que não era bem assim, que precisava fotos, que precisava documentos. - Taquí os documentos. Aonde eu tiro a foto? - Virando a esquina tem um fotógrafo. Ela foi. - Quero uma foto de passaporte. O funcionário explicou que não era bem assim, que foto para passaporte tinha certos requisitos: - Camiseta com nome de candidato da eleição passada, por exemplo, não pode. - Me empresta a tua. Tirou a camiseta no meio da loja. O fotógrafo foi camarada, teve que ser. Emprestou a camiseta, tirou a foto e imprimiu. Destrocaram as camisetas. Ela voltou para a polícia. Esperou pacientemente a sua vez. Cumpriu todas as formalidades. Quando terminou e recebeu um recibo com data de retirada para a semana que vem, ela quis chorar. Disse que tinha que viajar hoje. Não explicou o por quê. Teve medo que o policial fosse dizer: "Como a senhora deixou que isso acontecesse? Que tipo de mãe é? Não leu nossas advertências?". Só mostrou só a passagem. O policial ficou com pena e foi chamar o delegado. Se alguém tinha que explicar àquela pobre senhora que ela não ia viajar hoje, que fosse o chefe. O delegado levou Dona Matilde ao seu gabinete. Aquilo não era conversa para se ter em público. Ele explicou o dele, ela insistiu no dela. Ele concluiu que não tinha jeito. Era remover a dona à força ou fazer como ela queria. - Me dá o número do protocolo. E lá foi o delegado consultar listas, recolher assinaturas, carimbos, enfim, fazer tudo aquilo que fazia só em casos de extrema urgência política ou diplomática. Dona Matilde ficou na sala de espera. Às quatro da tarde o passaporte estava pronto. Veio o delegado pessoalmente entregar. - Se a senhora quiser, eu chamo um táxi para levá-la ao aeroporto. Ela fez as contas e recusou: - Vou de ônibus. O avião só sai às seis. O delegado podia ter deixado por isso, mas tinha se sensibilizado. Explicou do tempo que leva para chegar ao aeroporoto, dos tempos do check-in, por um triz não se ofereceu a levá-la pessoalmente. Ela contou o dinheiro para ver se dava. Dava. Aceitou ir de táxi. Em São Paulo, descobriu que a conexão para Roma só saía às onze da noite. Pensou na filha, nas coisas horríveis que estariam obrigando a filha a fazer àquela hora. - Às onze eu tenho que tá em Milão, moça. Não tem um avião mais cedo? A funcionária explicou que não tinha, que mesmo que tivesse, que um tal de fuso-horário e não sei mais o quê. Dona Matilde ficou quieta porque não queria aborrecer a moça. Podia ser sua filha. Podia ela estar nos panos da filha. Era abençoada e nem sabia, pobrezinha. Na hora de embarcar, a funcionária fez a gentileza de acompanhá-la pessoalmente pelo controle de passaporte até a porta do avião. Antes de se despedir explicou que o avião ia só até Roma, que de lá tinha que pegar outra conexão para Milão. Dona Matilde não tinha espaço na cabeça para pensar nisso. Estava se preparando para quando encontrasse a filha. O resto era detalhe. No avião, teve vergonha de conversar com os companheiros de vôo, todos gente rica e viajada, alguns até estrangeiros. Ouvia as conversas dos outros, mas não participava. Ouviu dois brasileiros discutindo o controle de passaporte na Itália. Um disse que eles fazem perguntas em italiano e a pessoa tem que se virar pra responder o que veio fazer, quanto tempo vai ficar, aonde vai ficar, quanto dinheiro tem. Só nessa hora Dona Matilde se deu conta da enormidade do que estava fazendo. "O que é que eu digo pro policial? Que vim buscar minha filha meretriz? Aí sim que eles me prendem e ainda vão atrás da filha. E se não me deixarem entrar? Ai meu Deus do céu!". Preocupada, não dormiu a viagem inteira. Em Roma, saiu do avião e foi seguindo os outros passageiros sem entender nada. Não entendia a língua, não entendia os corredores, não entendia aquele ônibus sem cobrador. Não se lembrava do que tinha que fazer para chegar a Milão. Estava cansada. Lá pelas tantas, se perdeu. Não tinha mais quem seguir, não sabia achar a saída, não podia pedir ajuda, tinha medo da polícia. Ouviu uma voz dizendo que não podia estar naquele hall. Olhou em volta, não viu ninguém. A voz continuou. Dava ordens, acusava, fazia perguntas. Ela acabou soltando um "por favor" em voz alta. Não teve vergonha de passar por louca. Ao contrário, sentiu alívio. Continuou desabafando cada vez mais alto com o policial imaginário. Implorou que não a prendesse. Suplicou pela filha. Protestou. Chorou. Gritou. Insultou. Teve convulsões. Se debateu no chão. Procurou coisas para atirar contra as paredes. Não encontrou. Atirou-se a si mesma. Praguejou até cair exausta, inconsciente. Quando acordou, estava deitada em um colchonete, em uma sala que parecia um quarto de hospital. Não se sentia ansiosa, nem preocupada, nem triste, nem nada. Não sentia nada. Pensou candidamente na filha estudante, no absurdo daquela aventura irrefletida. Foi interrompida por duas mulheres, uma fardada. A policial falou algo que ela não entendeu. A outra se apresentou em português: - Boa noite. Me mandaram do consulado. E disse outras coisas que ela não prestou atenção. Logo, logo, estaria voltando para casa. |
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