PANO
DE SEDA SUJO
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Eduardo
Prearo
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Marlene está sentada no seu belo sofá púrpura, adquirido em uma viagem a Paris. Alfonso chega, são dez da noite. "Nossa, por que demorou tanto? Jantei sozinha, mas pelo que vejo, ainda bem. Você está com uma péssima aparência e cheirando a uma mistura de perfume barato com cigarro. Dá pra sentir daqui. Não, não precisa me dizer onde esteve; eu presumo, eu presumo...que esteve no castelo da Cinderela, em um evento promovido por ela e pelo governo Francês." "Meu amor, na verdade estive trabalhando, como sempre. Você não me reconhece como trabalhador, parece que me acha um vagabundo. Se bem que após o trabalho, fui me divertir um pouco em uma danceteria." "Danceteria, na sua idade? Bom, deixa eu lhe contar o que aconteceu hoje na nossa empresa. Edgar, aquele rapaz cheio dos piercings, sabe?, me convidou para sair. Nada mal, eu lhe disse, e onde quer me levar?, indaguei-lhe. Ele quis dar uma dessas voltinhas ao shopping e então eu aceitei de imediato a proposta. Mas meu bem, acabei por torrar todo o dinheiro que tinha em roupas, o dinheiro do banco Armani. Agora preciso de um emprestado. E o maridinho não vai dizer não para a linda esposinha, vai?" Marlene acende um cigarro, levanta-se e começa a andar para lá e para cá. Parece preocupada. Olha da janela a vista maravilhosa da cidade (está no trigésimo oitavo andar), e volta-se para Alfonso. "Tive uma idéia hoje que me parece que vai dar certo, ou seja, vai melhorar a saúde dos nossos funcionários. Já ouviu falar em canudinhos que contêm probióticos? É, enfim, são ótimos para saúde e..." "Não estou me sentindo bem para falar de trabalho, do seu trabalho especificamente. Paolo voltou, ele está bem aqui dentro de mim, e basta apertar um botão para que ele comece a fazer o seu discurso." "Ah, sim, incorpóreo aqui, agora. Eu quero ver. Se pelo menos falar com Paolo resolvesse alguma coisa! Mas ele é um rapaz interessante. Você me disse que ele viveu na época vitoriana; deve estranhar toda essa modernidade atual. Incorpóreo e vamos andar por aí. Que tal irmos à Tiffany`s? Quero comprar um anel de brilhantes ou pelo menos contemplar alguns. Adoro diamante, você deveria saber, mas nunca foi capaz de dar-me um." "Mas Madame, sairmos agora, a esta hora, não seria perigoso? Eu, Paolo, não acho que deveríamos e..." "Paolo, Paolo. Acho que o senhor deveria se vestir melhor. Alfonso só veste aqueles ternos da moda, e isso me deprime. Está escutando algum bebê chorando?" "Sim, é o bebê do andar de baixo." "Essas paredes acústicas não dão mesmo resultado. Você, pelo que já percebi, é um garanhão. Aproxime-se de mim, vamos nos abraçar, preciso de um abraço. Isso o choca, por acaso, essa necessidade feminina de um abraço?" "Absolutamente não, madame. Mas não íamos sair? Se vamos sair, vamos logo, pois logo logo o shopping fecha." "Eu mando abri-lo, não se preocupe. Marlene é uma mulher, modéstia parte, fabulosa e mormente poderosíssima." "Paolo se foi de repente." "O quê? É você Alfonso? Estou cheia dessas suas incorporações. Só falta agora você vir com aquele bêbado entendido. Bom, de qualquer forma, vamos sair. Onde está minha bolsa? Onde está minha bolsa?" "Ali na cadeira, Marlene. Você andou pintando o cabelo?" "Ah, só agora que você reparou? Sim, pintei-o de vermelho, e ficou lindo. Ai, o celular está tocando. Não agüento mais. Olha, pronto, joguei-o pela janela. Foi uma coisa simples que eu estava com vontade de fazer há muito tempo." "Mas e seus contatos, seus amigos?" "Vou a Paris amanhã fazer compras." "Compras?" "Sim, no meu jatinho particular. E há uma novidade: eu vou pilotando. O que acha? Alfonso? Alfonso? O que você tem, está passando mal?" "Sim, dor no peito. Oh..." "Meus deuses, chamem a ambulância. Mordomo! Um mordomo-poeta, onde já se viu. Mordomo! Chame a ambulância porque Alfonso está..." "Sim, Madame?" "Não chame ninguém. Vá até o rapaz ali e veja se está morto. Oh! (chorando), coitadinho, ele era tão bom. Divertiu-se a valer na vida. E agora, toda a herança que herdou será minha. É a vida" "Mas ele ainda está vivo, Madame!" "Então chame a ambulância. Bom, vou dormir. Tenho mais o que fazer. Amanhã terei de acordar bem cedinho, antes das quatro. Meu amigo, trabalho duro. E as pessoas acham que não." "Que pessoas, Madame?" (Discando para emergência) "Todas. De qualquer forma irei ao shopping, e sozinha." Marlene sai, pega seu carro, e dirige meio que nervosa até o shopping. Que vida, a dela, pensa. Que vida mais enfadonha. Haverá um diamante capaz de satisfazê-la extremamente? Não, certamente que não. Tem tudo, é bem-sucedida, dá-se bem com os empregados, eles a respeitam. Alfonso vai com ela para Paris; estará bem pela manhã, foi só um desmaio. E uma mulher pilotar um avião até Paris parece meio que pioneiro, sim, uma mulher usando diamantes. Estaciona o carro, mas ao fazê-lo bate em um mercedes conversível. É o fim da picada, pensa. Para acalmar-se, lê um dos poeminhas do mordomo, um poema dele que guarda na carteira...
No shopping, Marlene pensa se amanhã trabalhará duro, se irá para Paris ou se simplesmente ficará em casa apreciando seu novo diamante. Talvez fosse melhor alugar um amigo, ou melhor, um amante. Alfonso nunca soube, mas ela faz isso às vezes, aluga homens. Até mesmo o mordomo ela já alugou, e por uma ninharia. Pára defronte de uma loja de cosméticos e vê um hidratante que promete livrá-la das rugas profundas. Não, pensa, não entro mais nessa. Prefere ficar enrugada, e se arrependeu de ter pintado o cabelo, pois o vermelho, mesmo agora demodê, não ficou lá essas coisas. Se ao menos Lancelote voltasse de Moscou! Lancelote a deixou sem mais nem menos. Esses estrangeiros que amou são pessoas difíceis. Não, é melhor esquecer os amantes. Alfonso é fiel a ela e isso a conforta. Pára, então, defronte de uma joalheria que não é a Tiffany`s, mas dá de cara com um diamante cor-de-rosa, a cor do amor. Cristaliza pelo anel e o compra. Sente-se por um instante culpada, mas isso passa, pensa. Volta para casa, aliviada. "Alfonso! Que agradável surpresa encontrá-lo. Está melhor. Esses seus desmaios merecem atenção, creio eu. De você os gays diriam: descarto fumantes e afeminados! Não vai me dizer que achou aquela história de ir para Paris verdade? Claro que não, meu amor. Se bem que...se bem que se amanhã eu acordar bem disposta e me der na teia, irei sim, com ou sem você." "Paolo me disse que você é uma..." "Não quero saber o que esse Paolo acha de mim. Uma pervertida, na certa. Ou então, uma esquizofrênica, algo assim. Meu amigo, você deveria estar dormindo. Quem cedo madruga, Deus ajuda, não é assim que diz o ditado?" "Isso é crença, Marlene." "Se fosse crença ninguém mais ficava falando disso. Tem-se que suar. Suei! Suei minha vida toda. Deus foi bom pra mim. E, modéstia parte, não sou de se jogar fora." "Você é repetitiva, Marlene. Acha então que não acordo cedo para trabalhar, acha que não trabalho suficientemente, acha que sou vadio e vivo a me divertir?" "Acho, acho. Nunca o encontro na hora do café! E o seu quarto está sempre trancado. O mordomo sempre deixa a porta do quarto onde dorme aberta. Se bem que outro dia estive lá, por volta das três da madrugada, sabe, para pedir-lhe uma água, e ele estava nuzinho, peladinho. Meu amigo, e não é que ele tem uma barriga grande! Eu lhe perguntei: mordomo, você por acaso está grávido? É, pois parecia um homem grávido com aquele barrigão. Ele disfarça muito bem com esses aventais. Que tal marcamos um horário para o desejum? Às sete está bem para você?" "Estou meio confuso com relação ao nosso casamento. Você parece um furacão, não pára quieta, não há quem agüente mais. Penso em nos mudarmos para um país de primeiro mundo, sim, para o interior de um país de primeiro mundo." "Alfonso, nós vivemos no terceiro, não é nenhum crime viver no terceiro. Claro que devemos ter aprontado em outras vidas, e como! Acho que fui uma primitiva, uma guerreira druida e violenta." "Todos nós somos primitivos, todos." "Até mesmo Einsten? Esse cientista, ao meu ver, não me parece primitivo. Se eu tivesse aquela inteligência, estaria agora fazendo chás de caridade. Mas até que sou caridosa, sim, até que sou." "Mas Einsten também era um selvagem." "Por quê, Alfonso? Você me acha insensível, eu sei. Aliás, todos me acham insensível e se eu fosse uma mulher pobre, uma suburbana, garanto que eu teria que me retratar com muita gente; sim, me retratar por coisas que não falei nem fiz. É assim, conheço bem as pessoas. Elas são melindrosas ao extremo, e são capazes de inventar histórias a seus respeitos para deixá-lo lá embaixo, para fazê-lo sentir-se culpado. É, isso deve ser uma forma de manipulação. Quero ser a primeira mulher a pousar na Lua." "Psiu." "O que é? Falei alguma besteira?" "Estou tendo uma de minhas visões. Vejo-a em um parque, você está de luto. Parece que veste roupas da moda." "Eu, vestindo roupas da moda? Você pirou de vez. Então quer dizer que acha que vai morrer, é isso? Sim, pois eu só poria o luto se fosse por sua causa." "Não é isso. É um outro tipo de luto, talvez por um diamante roubado, desaparecido." "Que horror, Alfonso, você me assusta às vezes. Se bem que...se eu perdesse um dos meus diamantes talvez eu me matasse, e como Virginia Woolf, sei lá: ao invés de uma pedra pesada no casaco, uns quilos de diamantes. Imagine, eu vestir luto porque perdi um diamante, essa é boa. No entanto, é uma visão bastante interessante. De qualquer forma, você bem sabe que só visto o preto mesmo meu astrólogo me proibindo, afinal, tenho Saturno mal. O que irá fazer amanhã após o trabalho?" "Vou a uma festa no Jockey. Não fui convidado, mas mesmo assim vou." "Vai ser posto pra fora ou então irá para a cadeia. Pare de subornar serviçais, isso é crime." "Marlene, você comete delitos todos os dias, pequenos delitos e de uma forma inconsciente. Se eu os contasse à polícia, você estaria presa, iria pra cadeira elétrica." "Bom, exagero ou não, o fato é que nosso casamento está acabado." "Acabado? Se você me largar a quem irá recorrer? Quem irá entendê-la do jeito que entendo? Quem lhe dará o prazer que lhe dou? Você me reconhece como o quê, afinal?" "Como um louco, um doente. Não fosse eu, estaria na sarjeta, em um albergue, torraria tudo até bem mais do que eu torro. Nunca me decepcionei tanto com alguém. Alfonso, ponha na cabeça que você perdeu aquela aparência já estranha, porém mais ou menos, que tinha. Agora tem cara de malandro, ouviu, cara de malandro. E além do mais tem ascendência italiana. Sabia que os portugueses punham os italianos nas senzalas junto com os escravos? Sim, mas eles eram no fundo bons; faziam isso para os italianos perderem a panca. Não existe português-nazista no mundo. Imagine! Se eu falasse isso para algum português viriam com aquele papo de retratação e de não-perdão eterno!" "Pare, Marlene, pare. Olha, já são três da madrugada. Afinal, nenhum de nós irá trabalhar amanhã, só se for de tarde. E como seus funcionários a vêm chegando de tarde no trabalho?" "Meu amigo, quem dá as ordens ali sou eu, sabia?" "Se eu fosse melindroso, não te olharia mais na cara. Você não me reconhece e me destrata." "Os melindrosos sempre têm razão. O que eu preferiria ser: uma louca certa, uma insana certa, uma mulher sadia certa, ou uma louca errada, uma insana errada, uma mulher sadia errada?" "Como vou saber? Eu não sei. EU NÃO SEI! E não estou com um pingo de sono no momento. Que tal abrirmos um champanhe?" "Pra baixar aquele bêbado entendido? Não, meu amigo, não mesmo. Só quero eu desmunhecando aqui. Mas por que cargas d`água você não está com sono? Tomou muito café durante o dia? " "Sim. Uma amiga minha me falou que eu devia ir à igreja dela, aceitar Jesus. E acho que você deveria fazer o mesmo." "Aceitar, como assim? Para cada um aceitar é uma coisa. Não sou religiosa, mas...se você quiser pode ir; vá com ela a um culto e quem sabe as coisas melhoram. Assim do jeito que está dá pra ficar, mas não namoramos mais, não fazemos amor mais, não..." "Marlene, o amor é muito mais do que sexo." "Ninguém nunca soube definir o amor para mim, sabia? Para uns, é sexo, para outros é algo além do sexo, mas creio que o amor mesmo tenha um sentido mais amplo." "Ah, Marlene, se os melindrosos te ouvissem, achariam-na imperfeita demais." "Alfonso, estou indo para o aeroporto. Paris, mona mur, Paris. Mordomo, nettoyez la salle de bain, s`il vous plaít. Sabe, Alfonso, quero um banho de horas. É a única coisa que preciso antes de viajar. Tenho brevê e vou pilotando. Mas será que conseguirei chegar a Paris, será que não desviarei o avião para as Índias ou para o Pólo Norte? Acho que vou em um vôo qualquer, e de classe econômica. Estou gastanto muito com jóias e é preciso economizar. Bom, até amanhã vou pensar. E quanto a você, não vá dormir no meu sofá, hein. Não o quero mais comigo, por enquanto. Olha, Alfonso, se você borrar esse sofá com alguma coisa eu te mato, tá ouvindo!" O aeroporto está apinhado de gente. Marlene opta por pegar a primeira classe. É mais seguro. O avião parte sem problemas técnicos. Como estava previsto, chega a Paris de noite. Qualquer hotel cinco estrelas lhe serve. Liga do celular para Bastião, o nordestino amigo que sempre lhe recebe na Europa. "Bastião, é Marlene. Estou em Paris e amanhã quero que venha ao meu encontro. Preciso sair, conhecer lugares que desconheço ainda. Se tiver algum compromisso, desmarque-o. Alfonso? Ah, Alfonso não quis vir. Diz que está trabalhando muito. Mentira! É vagabundo. Sim, sim, está bem. Aguardo-o no Petit Café Amanda às nove e trinta e nove. E por favor, não se esqueça de trazer Rodolfo. Quero ele conosco. No entanto, fale para ele tomar os remedinhos porque não admito que levantem a voz para mim, está ouvindo? Humilde? Acha Rodolfo um rapaz humilde? Suborne-o, está ouvindo, suborne-o caso ele não queira vir." "Acontece que Rodolfo é incorruptível, senhora. E estou sem entender por que veio a Paris assim, sem mais nem menos. Só para fazer compras? Daqui a pouco se enjoa e volta para o Brasil. Fogo de palha." "Esta querendo dizer que sou uma idiota, que sou uma insatisfeita como a maioria dos jovens são? Bom, tentando ver pelo lado positivo é até um elogio. Rodolfo pode não ser incorruptível, mas você, meu caro, é e até de mais. Sim, vim fazer compras, vim comprar perfumes, lingerie, artigos para cama, mesa e banho, enfim, vim comprar a tudo que me apatecer, inclusive homens e mulheres. Estou sonolenta, já tomei remédio para dormir. Agora vou delisgar. Encontre-me amanhã no tal Café. Isso é uma ordem." "Tudo bem, Madame. Mas quanto a Rodolfo não posso lhe garantir nada. Quanto a mim, sempre dou um jeito. Tenho empregados no loja, apesar de minhas clientes sempre sentirem minha falta quando pra lá não vou. A senhora sabe, um estilista de renome mundial, mesmo não dizendo palavra, marca presença forte. A senhora não está depressiva como da última vez em que nos vimos, está?" "Sim, estou. Quem não anda depressivo com um governo daqueles!" "Mas isso é discurso de pobre. Pelo que sei, seu governo benificia os ricos, não é?" "Sim, você está certo, Bastião. Devo ser sensitiva ou alguma coisa parecida. E além do mais, um terceiro mundista nunca deve parecer depressivo, e sim feliz. Não aprendo mesmo. E como anda Rodolfo, o que anda ele fazendo?" "Saindo com muitas mulheres. Anda estudando também, quer ser escritor. Imagine a senhora que ele tentou escrever um livro que as editoras rechaçaram prontamente. É vazio, ridículo como ele." "Ah, ele quer ser artista, é? Não que eu seja preconceituosa, mas sempre me pareceu que querer ser artista é coisa de homossexuais." "Não em França, senhora, não em França. Bom, então está combinado. É só isso?" "Não, tem mais uma coisinha. Também quero que me leve à praia. Ir a Paris e não ir à praia é como ir ao Egito e não visitar as pirâmides." "Oh, é claro, à praia, à praia. Entendi perfeitamente. Uma louca como a senhora é sempre compreendida. Ah, ah, ah! Espere um pouco, Madame Marlene. Amanhã, nesse brunch, prometo que vou lhe levar botões de rosas vermelhas para decorar a mesa onde sentaremos, ok?" "Rosas vermelhas? Oh, sim. Eu sempre serei apaixonada por Alfonso. Uma ótima idéia. E afinal, estou farta de subótimas idéias. Grande Bastião. A demain." "A demain. E por favor, nem pense em fazer um chá de rosas vermelhas com tais flores porque você é supercorrespondida por Alfonso. Aliás, por que não chamá-lo de Alfonse?" "Sim, ah, ah, de agora em diante vamos chamá-lo de Alfonse. Ele estará vindo para cá em breve. Estou morrendo de saudades, apesar do bêbado entendido." "Todos nós somos meio selvagens, ou melhor, entendidos, não é, Marlene?" "Acho que só os entendidos acham isso, meu amor. A demain, a demain, a demain..."
"Alô?" "É Alfonso." "Vai trabalhar, vagabundo, vai trabalhar, vagabundo!" "Meu bem, como você gosta de me contrariar, hein!" "Ah é, perdoe-me. Passe na minha empresa e dê uma verificada se todos foram trabalhar, sim? E você, como está? Melhorou depois que Paolo o fez dizer aquelas coisas horríveis para mim? " "Paolo não virá mais. Eu...eu...eu estou com o bêbado entendido me amolando agora." "Então vou desligar. Quando você é aquele bêbado entendido, que além do mais é um penetra, você fica insuportável, querendo agarrar os homens. Isso é uma aberração, não aceito. Estou pensando até em divórcio por causa dele. Bom, está bem, basta. Até logo." "Até o mês que vem, não é?" "Não, o senhor parte amanhã ou o mais tardar daí, virá ao meu encontro. Alfonse, não posso ficar sem você." "Alfonse, que história é essa, amor?" "É uma longa história, mas é o seu novo nome: Alfonse. Gostou?" "Sim, está bem. Pego o avião amanhã a noite, está bem assim?" "Está. A bientôt." "A bientôt." Manhã em Paris. Depois, outra manhã, e nessa chove. São oito horas, Madame acorda, alguns sinos dobram. Madame pede que lhe levem o café da manhã no quarto. A gran café. Madame está faminta. As rosas vermelhas estão murchas, as cortinas verdes adejam, ela fuma. Está nervosa e não sabe o porquê. Alfonse já deve estar em Paris, mas por que não ligou? A chuva parece neve: é uma espécie de garoa branca inusitada; deve ser algo pragmático por aqui, pensa. Pensa também que um dia quis ser freira, mas a mãe não deixou. Como pôde pensar um dia em ser freira? Alfonse não liga, já deve estar em Paris. Alfonse não é paranóico, isso é bom. Ela também não, mas por que pensa nisso? Não há espiões em França. E por que é obcecada por Paris? Poderia ser por Londres ou por Nova Iorque. Imagina que tem algo a ver com outras vidas; depois imagina que outras vidas inexistem, que existem outras vidas sim, mas em uma vida só. Liga o televisor. Parece que há uma notícia horrível, aumenta o volume. Não entende bem, mas parece que um avião acaba de cair, de cair no mar, e um avião cujo o destino era Paris. Vôo 1925, Paris. Alfonse! Alfonse! Como a vida é breve: assim, sem mais nem menos, a morte leva as pessoas para um lugar que poucos conhecem, ou ninguém. Estará Alfonse feliz onde está, agora? Estará no purgatório ou indo em direção a um? A culpa foi dela, e no enterro dela não irá ninguém, será jogada em uma vala; e do outro lado, em um purgatório, sofrerá horrores. Ou então não, ou então não. Em uma tarde de domingo, joga as cinzas do amado no parque do Ibirapuera. Por que não voltou a Paris, jogou-as lá? Não sabe. Resolve vender tudo, doar tudo, doar-se. Sim, agora será freira... Pássaros celestes chilram um chilrear divino. A lua está azul; a segunda lua cheia de um mês é sempre azul. Marlene recorda-se de Alfonse, de sua vida mundana. Teve tudo o que o dinheiro pôde comprar. Está sentada em uma pedra, nos fundos do convento. Para ela tudo o que faz, fez ou fará, contém algum egoísmo. Agradece tanto por ter ainda saúde! A Madre Superiora se aproxima dela e lhe oferece uma margarida. Seus diamantes agora são margaridas, as flores são a pureza. "Quer cantar no nosso coral?" "Cantora? Sim, oh, céus, como quero, Madre." "Coragem! Coragem!" "Oh, nunca ninguém me disse isso (chorando)." De súbito, uma pequena estrela desliza pelo céu. Marlene desliza pelos corredores, pelos campos floridos, pelo mar dos sofredores. Fim |
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