HISTÓRIA
DE SETE PARÁGRAFOS
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Aline
Carvalho
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Tudo bem, eu sei que essa conversa é antiga e já encheu mas, quando eu nasci, juro que não tinha nem um anjo lá. Nem unzinho, por menorzinho que fosse, Nem torto, de uma asa só. Nem vesgo, cego de um olho. Nem com o pé fraturado e celulite nas coxas. Não tinha nem um. Tinha meu pai que, ao ver a recém-nascida de oito meses, pele arroxeada e sem unhas, praticamente uma rã, exclamou "- Gerei um monstro!" Monstro? Nada mais distante da realidade. O que aconteceu nunca foi descrito. Vocês podem procurar nos livros de medicina - embriologia, para ser mais exata - que não vão encontrar. Não tinha nem um anjo lá. Agenesia de anjo da guarda. Garanto que o único caso é o meu. Daí a sentença, não pronunciada - "vai, Aline, ser coadjuvante na vida". E assim é que eu me tornei coadjuvante na minha própria história. Tudo bem que, para quem está de fora, até parece que eu não sou qualquer marionete com um bando de gente puxando os cordões a seu bel prazer. Até que dá pra pensar que, diante das circunstâncias que a vida me ofereceu, consegui alguma coisa. Tudo bem: de vez em quando, eu canto. De vez em quando, um aluno meu aprende alguma coisa. De vez em quando, um filho volta pra casa. De vez em quando, a comida é boa, o orgasmo é verdadeiro, o sono é pacífico. Só Deus sabe que eu tentei. Tentei fazer o verso perfeito, a metáfora última e insubstituível. Tentei ser a mulher universal, a mãe sagrada, a mestra da divina sapiência. Tentei cozinhar, tentei bordar, tentei lavar e passar. Tento escrever. Mas não dá pra viver de de-vez-em-quandos e tentativas. Não tinha nem um anjo lá, eu juro. Talvez estivesse no banheiro (como saber qual, se anjo não tem sexo). Talvez assistisse à novela das seis. Talvez estivesse fazendo uma boquinha na lanchonete da esquina. Eu juro: não tinha nenhum anjo lá, e essa ausência permitiu que nascesse mais um farrapo na humanidade. Tudo bem: talvez os anjos nem existam. |
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