A
RAPOSA
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Sharon
Ratis
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Fui buscar o uísque. Chovia muito, mas não me incomodei. Entrei no primeiro supermercado que encontrei. Nem era bem um supermercado, estava mais para padaria, dessas bem grandes. Fora difícil encontrar um lugar aberto num fim de tarde de domingo. Juntei cada centavo que eu tinha nos bolsos e comprei o melhor uísque que havia. Guardei a garrafa sob a jaqueta dele. -Leve minha jaqueta, assim você vai se resfriar, ele dissera enquanto eu saía. Preocupação mais besta! Quase irônica. E me agarrei a ela como se estivesse segurando minha vida. Melhor seria dizer: como se estivesse agarrando, protegendo a vida dele. Saí correndo, debaixo do temporal. - Deus, por favor, faça que dê tempo... Eu corria, corria. A chuva começou a se transformar numa garoa bem fria e fina, mas eu nem notava. O céu escuro, lembrando a noite, parecia compactuar comigo. Será que Deus compactuaria também ? "Por favor, Deus" - murmurei enquanto levantava o braço para secar os olhos com a manga da jaqueta. A garrafa, por pouco, não se espatifou no chão. Subi os cinco andares pela escada mesmo. Só o barulho dos meus passos e da minha respiração cansada quebrava o silêncio do interminável corredor branco. Abri a porta de supetão, já ventilando. Ele me pareceu ainda mais sem cor. Talvez fossem seus longos cabelos escuros e encaracolados que acentuassem sua palidez. A quem estou querendo enganar, meu pai ? De dentro de sua alvura quase angelical, ele me sorriu agradecido. - A essa altura, que mal pode me fazer, não é ? - Não diga isso - respondi com os olhos vermelhos e com o estômago embrulhado. Entreguei-lhe a garrafa. Ele tomou um gole e a passou para os outros. Peguei sua mão. Segurei-a firme, no meu colo. - Saíram daqui agorinha. Disseram que foi só um susto. Ele consegue respirar sozinho - o Mais Bonito de Todos me explicava enquanto me passava a garrafa - mas é melhor que ele fique aqui mais uns dias. Depois a gente leva ele para casa. Só um susto. Não sei se o que embrulhava mais o meu estômago era o gosto metálico do medo ou o cheiro do éter. O de Jaqueta Prateada com um Ás de Espadas nas Costas estava inquieto, andava de um lado para o outro aumentando meu enjôo. Tomou mais da metade da garrafa em grandes goles que escorriam pelo seu queixo enquanto ele tentava secar com as costas da mão. Vontade de sair dali gritando e arrancando todos os meus cabelos. O Mais Bonito de Todos enchera um copo descartável até a metade e se sentara na ponta de uma cadeira, com o cotovelo apoiado no joelho e a mão segurando a cabeça baixa. Chorava baixinho. O de Calça de Couro Preta estava de costas para mim, próximo à janela, olhando a chuva bater contra o vidro e escorrer turvamente. - Parece que hoje vamos ter neve, finalmente. Ele dormia sereníssimo. Tão bonito, assim, dormindo. Pelo menos não estava pensando. Nem sendo devorado pelo medo - como nós. Seus monstros estavam sedados com ele. Ainda não eram nove horas quando pediram para que nos retirássemos. De nada adiantaria ficarmos ali, ele estava bem, estaria em casa antes do final da semana. Devíamos ir embora, descansar. Ele só acordaria no dia seguinte. O de Jaqueta Prateada com um Ás de Espadas nas Costas escondeu o pouco que sobrara do uísque dentro do armário que, na pressa, acabou ficando com a porta aberta. Lembrei-me de uma conversa que tivemos antes de ele adoecer. Contei-lhe que, quando eu era pequena, não conseguia dormir até que minha avó olhasse meu armário se certificando de que não havia nenhum monstro lá dentro. Ela fechava a porta e apagava a luz, deixando-me sozinha no escuro. Enquanto o sono não chegava, eu ficava esperando a porta do armário se abrir e um monstro marrom de forma ovulada, com quatro pares de braços sair para me buscar. Então eu fechava os olhos com muita força, sentindo o hálito fétido da criatura contra o meu rosto. Eu me encolhia para escapar de suas garras, de seu abraço mortal. Se eu abrisse os olhos - tinha certeza, certeza - eu o veria me fitando com seus olhos vermelhos injetados e rindo do meu desespero com sua língua azulada de coisa morta, podre. Ele me contou que, em sua infância, também tivera pesadelos com esse monstro, mas que ele morava embaixo de sua cama. Acabamos a conversa às gargalhadas, com ele me dizendo que o monstro era a versão má da Fada do Dente. Fomos para o apartamento de O Mais Bonito de Todos apenas por ser o mais perto. Ninguém disse uma palavra, mas o desespero era uma presença física no carro. Ele sempre nos dissera que era esperto. Astuto como uma raposa. Que não tinha medo de nada porque nunca nada poderia pegá-lo de surpresa, pois ele dormia com um olho aberto. - Como pode ser isso, Eric ? Ninguém dorme com um olho só! Está parecendo a história do homem que chorava com um olho só! Ele não respondia, apenas ria, ria, guardando sua esperteza só para si. E eu vi este homem safo lutando - como tantos outros lutaram antes dele - dormindo com medo, agarrando o travesseiro com força, escondendo suas lágrimas para não nos assustar. O Mais Bonito de Todos puxou minha cabeça ao encontro de seu ombro. Aconcheguei-me. Os pensamentos sumiram sem deixar rastros. Estávamos todos tão cansados, tão assustados. Foi de madrugada que aconteceu. Acordei sobressaltada, toda suada. Lembrei-me da porta do armário aberta. O Mais Bonito de Todos me abraçou procurando me acalmar enquanto o de Calça de Couro Preta ligava para saber. Quando desligou o telefone, lemos a resposta em seu olhar. O monstro pegou a raposa que gostava de andar sobre o fio da navalha com o coração batendo fora de controle e o perigo correndo logo atrás. De nada adiantou sua astúcia. Nem dormir com um olho aberto. Ninguém pôde fazer nada porque ninguém esperava que ele fosse embora assim, sem pistas, de repente, sem deixar vestígios. - Como um passarinho - nos disseram. Não. Como uma raposa pega por um cão de caça inglês que já dera indícios de ter desistido de apanhá-la. Deus o matou logo que ele ultrapassou o ponto de retorno. |
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