O
TAPA
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Ricardo
Lahud
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Ela tentou se pôr de pé, tentou gritar que nem seu pai levantava a mão quando o segundo tapa a deixou calada. Calada e com o rosto dolorido. Calada e dolorida se manteve no casamento por dezoito anos. Nele, pariu e criou três filhos saudáveis a quem obrigava o chamarem de senhor, a quem obrigava a pedir benção meu pai, nas poucas vezes que o encontravam em casa. Labutava como se cinco fosse, para manter o melhor lar, a casa mais limpa, a refeição nutritiva e saborosa, nunca reclamava do dinheiro pouco. Quando a espera na mesa do jantar era vã, e tantas vezes o era, separava o melhor naco da sopa e esperava acordada até poder esquentá-la para o marido. Conforme perdia a forma, o viço, a graça, diminuía a discrição do marido e, dezoito anos depois de se fazer calada, soube que montara casa para outra, no mesmo bairro, no caminho do caçula para a escola. Decidiu confrontá-lo. Caprichou no caldo verde com paio, iguaria favorita do esposo, e esperou. -
Está boa? -
Chsss - o ruído acirrante do comensal sugando as últimas
gotas da colher, como todas as noites. -
Quem é Margaret? -
Chsss -
Tudo bem, acho que você tem todo o direito, afinal eu também
lhe traí muitas vezes. -
Chsss -
Dos meninos, Roberto é seu, com certeza. O pai de Cláudio
talvez seja seu irmão, lembra das férias em Lindóia?
E Marcelo é do Agenor, aquele antigo vizinho que você achava
que era bicha. Pois é, não era. -
Chsss - Virou corno manso agora? Não se importa? Ruge
tresloucada e avança brandindo a faca de cozinha. Sem esforço,
ele alcança o punho armado e o torce, evitando o golpe. Ela cerra
os olhos e contrai a musculatura de todo o corpo esperando a bofetada,
a surra. Sente apenas a liberação do braço e o pesado
movimento do marido em direção ao banheiro. Em lágrimas
e calada, se joga no assoalho, a face latejando de dor do tapa ausente.
Ao ouvir o ruído porco da descarga, recolhe os sons do choro e se apressa ao quarto de costura buscar o terno de lã marinho, passado com capricho, pelo qual o marido gritará em instantes. Desejará boa-noite e tome cuidado, mas evitará o beijo com o olhar cansado. Mas se ele cometer o erro de perguntar no que ela está pensando, tão quieta, responderá que está torcendo para que o veneno faça efeito antes que ele volte para casa. |
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