Tema 180 - VESTÍGIOS
BIOGRAFIA
A HISTÓRIA DE NÓS DOIS
Maria das Mercês Apóstolo

Eles não se viam há mais de cinco anos. Falavam-se ao telefone de vez em quando, com azedume e frieza às vezes; com calor e algo parecido com amizade em outras ocasiões.

Com a ida do filho para a casa dela esse contato estreitou-se e resvalou para a hostilidade aberta da parte dela, pedindo interferência para disciplinar o filho, reclamando, queixando-se sempre, azucrinando os ouvidos dele, culpando-o por tudo o que o filho não pudera ser e por tudo no que afinal se tornara. E ele lhe respondia ora com frieza e cansaço extremos, ora com impaciência e raiva mal controladas, fiel à sua maneira de ser, algo distante, que para a maioria das pessoas passava por gentileza, educação, ou talvez fosse, mas que para ela cortavam e ardiam como gumes afiados.

E quando a situação do filho se explicitou eles foram obrigados a se encontrar. E se viram.

Uma mulher cinzenta entrando na meia idade, com olhos tristes e sem brilho, faces marcadas e um corpo pesado sem nada da graça e leveza de tantos anos antes, assim ele a viu e todo o seu desprazer se refletiu na postura cautelosa e distante com que a cumprimentou, erguendo o braço para o enlace convencional, medindo e controlando a distância entre os corpos, e lhe depositando na face um beijo mais rápido e leve que o roçar da asa de uma borboleta. E ela o viu como uma mistura do que se lembrava, do que tecera no coração por todos esses anos e o que se lhe apresentava agora: um homem compacto, um corpo começando também a pesar, mas ainda com toda beleza que lhe tirara o fôlego tantos anos atrás. Todo o ser dela se retraiu e se expandiu como se sua alma tivesse retido a respiração e a tivesse soltado toda de uma vez. Foi literalmente como se seu coração soluçasse.

E assim eles se encontraram novamente e depois de tantos anos de incomunicabilidade emocional começaram a conversar.

O filho internou-se na cidade do pai e ela para acompanhar o seu tratamento passou a ir para lá todo fim de semana. No primeiro, ele foi esperá-la na rodoviária, levou-a ao seu apartamento e preparou-lhe o café da manhã, e enquanto o tomavam juntos ele perguntava-lhe coisas sobre sua vida, seu trabalho, tentando talvez, ser apenas gentil, romper o silêncio que às pessoas bem educadas pode parecer rude e constrangedor. Ela, porém tomou seu interesse pelo que se apresentava: interesse. Deus! Ele estava demonstrando interesse nela! E então enveredava por suas histórias, suas pequenas conquistas, sua vida gris e sem encanto. E enquanto falava todo o seu corpo falava junto, na tentativa de tecer em torno deles a velha teia do encantamento que em dias tão distantes os enredara.

Depois das sessões nas quais ela chorava pela situação do filho, pelo medo sobre o seu futuro, mas também por si mesma, apoiando-se nos braços agora tão compactos e mais fortes, respirando aquele cheiro tão familiar e ao mesmo tempo tão distante, eles saiam para almoçar e continuar a tecer a rede do encantamento. E isso durou quatro fins de semana.

O quinto foi diferente. Tiveram a sessão como as outras, ela se tornando mais afirmativa e menos chorosa, apreciando a companhia e gentileza dele e apagando do coração os anos de recriminações e ressentimentos e ele, protetor e carinhoso, atento às ações dela, elogiando suas sandálias, fitando os seus olhos ao conversarem e rindo francamente das ironias e histórias dela. Almoçaram em um restaurante que já tinham visitado nos tempos de dantes; voltaram à casa dele a pé, pois era cedo para o retorno dela e ele sugeriu que seria bom ela descansar um pouco antes de ir.

Então chegaram ao apartamento, colocaram o cd que ela lhe havia trazido e a tarde foi se escoando mornamente, prenhe de emoções contidas, caladas, reprimidas que por fim explodiram de dentro dela. E quando menos esperou estava dizendo que o amava. Dizia isso sem encará-lo, pois mais que tudo temia ver no rosto dele o ar de frieza e desagrado que tantos anos antes ali vira. Mas ele respondeu suavemente:

- Gosto de você. Quer fazer amor comigo ?

A vida dentro dela refluiu como uma maré. Seu coração deu uma infinitesimal parada que a deixou tonta e nauseada, quem sabe devido à posição horizontal em que se encontrava.

Ela respondeu:

- Ah! É tudo o que eu mais quero, mas será que devemos...

Ele murmurou com voz rouca:

- Você sempre foi mais sensata do que eu...

- Não. Apenas me conheço - ela disse.

Um minuto inteiro se escoou enquanto os dedos dela, suavemente seguiam as linhas das veias nos braços dele, depois ela perguntou:

- Há algum problema pra você se a gente fizer amor ?

- Você quer dizer, porque tenho namorada ? - ele quis saber.

- Sim - ela sacudiu a cabeça.

Não, respondeu ele. E pra você há algum problema ?

Ela sorriu tristemente - Aprendi a aceitar o que a vida oferece.

E então foram para o quarto onde ele a beijou na boca e o beijo foi exatamente como ela se lembrava quente, macio e doce. E o mais interessante foi que novamente seu coração saltou e ela sentiu que o tempo havia parado e que estivera em uma bolha em todos esses anos, somente à espera desse momento.

Brincaram os seus jogos com empenho e uma certa reserva e estranheza de parte a parte como dançarinos que tivessem perdido o ritmo depois de longo tempo sem ensaiar. E a dança se desenrolou com certa timidez, uma inibição de corpos, buscando se harmonizar e não conseguindo de todo. E durante todo esse interlúdio eles se proporcionavam carinhos, sussurros, beijinhos, lambidas e ela lhe derramava todo o caudal do seu amor represado e todo o mar de sua solitária vida.

Ele então se lembrou de que necessitava comprar seu medicamento, vestiu-se e saiu para buscá-lo, recomendando-lhe que não se afastasse dali.

Voltou algum tempo depois pronto para o combate, com tanta urgência que mal lhe deu tempo para preparar-se para recebê-lo. E a dança recomeçou, o velho passo sincronizado, agora talvez, auxiliado por um viagra, e ela o chamou de amor e ele a chamou de tesão, e tudo terminado, resvalaram para o leito lado a lado como dois lutadores exaustos e empatados.

Conversaram, trocaram carinhos e ela preparou-se para ir embora. Na rodoviária beijaram-se amorosamente em despedida.
No dia seguinte ela enviou-lhe um e-mail a pretexto de mandar-lhe alguns textos e encerrou com "um beijo doce"; ao que ele agradeceu e encerrou com "um beijo cheio de bem querer para ti", palavras que tremeluziram através das lágrimas que subitamente inundaram os olhos dela. E nessa empolgação mandou-lhe mais tarde outro e-mail com "um beijo cheio de amor", ao qual ele não respondeu.

Eles se falaram durante a semana sobre o filho e ele foi cuidadoso em dizer "só estou te telefonando para..."

Ela passou a semana na expectativa do momento de encontrá-lo. Como a receberia ?

Ela se atrasara e quando chegou, pegou um táxi direto para o apartamento. Ele deu-lhe um breve abraço, estava atrasado para o trabalho. Mostrou-lhe as chaves do apartamento, preparou-lhe a mesa do café caprichado como sempre, deu-lhe um abraço e um selinho e se foi. Ela lavou a louça, notou na pia dois copos para vinho, pratos e talheres vários. Olhou o quarto dele, onde apenas uma semana antes tinha entrado como convidada bem vinda e que agora, com a cama amarfanhada tão hostil lhe parecia.

Afastou para um lado os pensamentos e concentrou-se nas tarefas que havia trazido e quando ele voltou, ela estava quase tranqüila.

Ele se pôs a cozinhar e o seu balé da pia ao fogão ela acompanhava embevecida, observando as mãos grandes e rápidas cortando a abobrinha, mexendo as panelas, a voz amada, aquela voz pausada, com a doce firmeza e segurança dos corações frios, ensinando a fazer o prato que preparava.

À mesa do almoço entre uma frase e outra a dor lhe veio à garganta e ela quase engasgou. Engoliu o alimento e meio que lhe perguntou:

- Não há lugar para mim na sua vida, não é ?

E ele de rosto tenso, branco respondeu:

- Não é questão de lugar. Não há possibilidade...

Ela arfou, a dor subindo e ameaçando escapar. E a sensação foi como se seu coração despencasse ladeira abaixo, e quicando aqui e ali se esborrachasse aos seus pés. Uma mão de ferro lhe comprimiu o peito como um infarto e ela pensou quão bom seria morrer ali naquela hora. Mas não morreu.

Sentiu-se manipulada, usada e gritou-lhe com a voz da dor:

- Você devia ter me protegido!

Ah! Sim, é o que ela sentia. Devia te-la protegido de si mesma já que nada tinha a oferecer-lhe.

E quanto mais ela afundava na dor mais injustiçada se sentia. Sim, fora manipulada, covardemente usada e jogada fora, como papel higiênico. Mas não manipulara também ? Fora um jogo de dois, não fora ? Fora um jogo de dois e ela o perdera. Na verdade não tivera a menor chance, mas como todo jogador inveterado não se importara com as chances, tudo o que quisera fora jogar. Sentir de novo o anseio, o suor frio, o coração batendo em tumulto, a vida a correr nas veias, os tempos idos, mesmo que fosse só aquela vez.

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