A
HISTÓRIA DE NÓS DOIS
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Maria
das Mercês Apóstolo
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Eles
não se viam há mais de cinco anos. Falavam-se ao telefone
de vez em quando, com azedume e frieza às vezes; com calor e algo
parecido com amizade em outras ocasiões. Com
a ida do filho para a casa dela esse contato estreitou-se e resvalou para
a hostilidade aberta da parte dela, pedindo interferência para disciplinar
o filho, reclamando, queixando-se sempre, azucrinando os ouvidos dele,
culpando-o por tudo o que o filho não pudera ser e por tudo no
que afinal se tornara. E ele lhe respondia ora com frieza e cansaço
extremos, ora com impaciência e raiva mal controladas, fiel à
sua maneira de ser, algo distante, que para a maioria das pessoas passava
por gentileza, educação, ou talvez fosse, mas que para ela
cortavam e ardiam como gumes afiados. E
quando a situação do filho se explicitou eles foram obrigados
a se encontrar. E se viram. Uma
mulher cinzenta entrando na meia idade, com olhos tristes e sem brilho,
faces marcadas e um corpo pesado sem nada da graça e leveza de
tantos anos antes, assim ele a viu e todo o seu desprazer se refletiu
na postura cautelosa e distante com que a cumprimentou, erguendo o braço
para o enlace convencional, medindo e controlando a distância entre
os corpos, e lhe depositando na face um beijo mais rápido e leve
que o roçar da asa de uma borboleta. E ela o viu como uma mistura
do que se lembrava, do que tecera no coração por todos esses
anos e o que se lhe apresentava agora: um homem compacto, um corpo começando
também a pesar, mas ainda com toda beleza que lhe tirara o fôlego
tantos anos atrás. Todo o ser dela se retraiu e se expandiu como
se sua alma tivesse retido a respiração e a tivesse soltado
toda de uma vez. Foi literalmente como se seu coração soluçasse. E
assim eles se encontraram novamente e depois de tantos anos de incomunicabilidade
emocional começaram a conversar. O
filho internou-se na cidade do pai e ela para acompanhar o seu tratamento
passou a ir para lá todo fim de semana. No primeiro, ele foi esperá-la
na rodoviária, levou-a ao seu apartamento e preparou-lhe o café
da manhã, e enquanto o tomavam juntos ele perguntava-lhe coisas
sobre sua vida, seu trabalho, tentando talvez, ser apenas gentil, romper
o silêncio que às pessoas bem educadas pode parecer rude
e constrangedor. Ela, porém tomou seu interesse pelo que se apresentava:
interesse. Deus! Ele estava demonstrando interesse nela! E então
enveredava por suas histórias, suas pequenas conquistas, sua vida
gris e sem encanto. E enquanto falava todo o seu corpo falava junto, na
tentativa de tecer em torno deles a velha teia do encantamento que em
dias tão distantes os enredara. Depois
das sessões nas quais ela chorava pela situação do
filho, pelo medo sobre o seu futuro, mas também por si mesma, apoiando-se
nos braços agora tão compactos e mais fortes, respirando
aquele cheiro tão familiar e ao mesmo tempo tão distante,
eles saiam para almoçar e continuar a tecer a rede do encantamento.
E isso durou quatro fins de semana. O
quinto foi diferente. Tiveram a sessão como as outras, ela se tornando
mais afirmativa e menos chorosa, apreciando a companhia e gentileza dele
e apagando do coração os anos de recriminações
e ressentimentos e ele, protetor e carinhoso, atento às ações
dela, elogiando suas sandálias, fitando os seus olhos ao conversarem
e rindo francamente das ironias e histórias dela. Almoçaram
em um restaurante que já tinham visitado nos tempos de dantes;
voltaram à casa dele a pé, pois era cedo para o retorno
dela e ele sugeriu que seria bom ela descansar um pouco antes de ir. Então
chegaram ao apartamento, colocaram o cd que ela lhe havia trazido e a
tarde foi se escoando mornamente, prenhe de emoções contidas,
caladas, reprimidas que por fim explodiram de dentro dela. E quando menos
esperou estava dizendo que o amava. Dizia isso sem encará-lo, pois
mais que tudo temia ver no rosto dele o ar de frieza e desagrado que tantos
anos antes ali vira. Mas ele respondeu suavemente: -
Gosto de você. Quer fazer amor comigo ? A
vida dentro dela refluiu como uma maré. Seu coração
deu uma infinitesimal parada que a deixou tonta e nauseada, quem sabe
devido à posição horizontal em que se encontrava. Ela
respondeu: -
Ah! É tudo o que eu mais quero, mas será que devemos... Ele
murmurou com voz rouca: -
Você sempre foi mais sensata do que eu... -
Não. Apenas me conheço - ela disse. Um
minuto inteiro se escoou enquanto os dedos dela, suavemente seguiam as
linhas das veias nos braços dele, depois ela perguntou: -
Há algum problema pra você se a gente fizer amor ? -
Você quer dizer, porque tenho namorada ? - ele quis saber. -
Sim - ela sacudiu a cabeça. Não,
respondeu ele. E pra você há algum problema ? Ela
sorriu tristemente - Aprendi a aceitar o que a vida oferece. E
então foram para o quarto onde ele a beijou na boca e o beijo foi
exatamente como ela se lembrava quente, macio e doce. E o mais interessante
foi que novamente seu coração saltou e ela sentiu que o
tempo havia parado e que estivera em uma bolha em todos esses anos, somente
à espera desse momento. Brincaram
os seus jogos com empenho e uma certa reserva e estranheza de parte a
parte como dançarinos que tivessem perdido o ritmo depois de longo
tempo sem ensaiar. E a dança se desenrolou com certa timidez, uma
inibição de corpos, buscando se harmonizar e não
conseguindo de todo. E durante todo esse interlúdio eles se proporcionavam
carinhos, sussurros, beijinhos, lambidas e ela lhe derramava todo o caudal
do seu amor represado e todo o mar de sua solitária vida. Ele
então se lembrou de que necessitava comprar seu medicamento, vestiu-se
e saiu para buscá-lo, recomendando-lhe que não se afastasse
dali. Voltou
algum tempo depois pronto para o combate, com tanta urgência que
mal lhe deu tempo para preparar-se para recebê-lo. E a dança
recomeçou, o velho passo sincronizado, agora talvez, auxiliado
por um viagra, e ela o chamou de amor e ele a chamou de tesão,
e tudo terminado, resvalaram para o leito lado a lado como dois lutadores
exaustos e empatados. Conversaram,
trocaram carinhos e ela preparou-se para ir embora. Na rodoviária
beijaram-se amorosamente em despedida. Eles
se falaram durante a semana sobre o filho e ele foi cuidadoso em dizer
"só estou te telefonando para..." Ela
passou a semana na expectativa do momento de encontrá-lo. Como
a receberia ? Ela se atrasara e quando chegou, pegou um táxi direto para o apartamento. Ele deu-lhe um breve abraço, estava atrasado para o trabalho. Mostrou-lhe as chaves do apartamento, preparou-lhe a mesa do café caprichado como sempre, deu-lhe um abraço e um selinho e se foi. Ela lavou a louça, notou na pia dois copos para vinho, pratos e talheres vários. Olhou o quarto dele, onde apenas uma semana antes tinha entrado como convidada bem vinda e que agora, com a cama amarfanhada tão hostil lhe parecia. Afastou
para um lado os pensamentos e concentrou-se nas tarefas que havia trazido
e quando ele voltou, ela estava quase tranqüila. Ele
se pôs a cozinhar e o seu balé da pia ao fogão ela
acompanhava embevecida, observando as mãos grandes e rápidas
cortando a abobrinha, mexendo as panelas, a voz amada, aquela voz pausada,
com a doce firmeza e segurança dos corações frios,
ensinando a fazer o prato que preparava. À
mesa do almoço entre uma frase e outra a dor lhe veio à
garganta e ela quase engasgou. Engoliu o alimento e meio que lhe perguntou: -
Não há lugar para mim na sua vida, não é ? E
ele de rosto tenso, branco respondeu: -
Não é questão de lugar. Não há possibilidade... Ela
arfou, a dor subindo e ameaçando escapar. E a sensação
foi como se seu coração despencasse ladeira abaixo, e quicando
aqui e ali se esborrachasse aos seus pés. Uma mão de ferro
lhe comprimiu o peito como um infarto e ela pensou quão bom seria
morrer ali naquela hora. Mas não morreu. Sentiu-se
manipulada, usada e gritou-lhe com a voz da dor: -
Você devia ter me protegido! Ah!
Sim, é o que ela sentia. Devia te-la protegido de si mesma já
que nada tinha a oferecer-lhe. E quanto mais ela afundava na dor mais injustiçada se sentia. Sim, fora manipulada, covardemente usada e jogada fora, como papel higiênico. Mas não manipulara também ? Fora um jogo de dois, não fora ? Fora um jogo de dois e ela o perdera. Na verdade não tivera a menor chance, mas como todo jogador inveterado não se importara com as chances, tudo o que quisera fora jogar. Sentir de novo o anseio, o suor frio, o coração batendo em tumulto, a vida a correr nas veias, os tempos idos, mesmo que fosse só aquela vez. |
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