O
XALE
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Araceli
Sobreira Benevides
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O tear batia para frente e para trás. As mãos ágeis cruzavam as linhas como quem trama os destinos: apertando aqui, soltando ali; colocando um fio prateado nessa parte, juntando um punhadinho de linha mais à frente; outra laçada, um nó e pronto, tava feita a vida, tava feito um xale de noite. Em nenhuma parte dele ficava os vestígios das mãos que o tecera. Em nenhuma franja denotava o árduo trabalho das mãos enrugadas e calejadas a gerar as tramas. Era um xale para a noite. Preto, comprido, quente. Feito a noite, feito o destino, feito a vida, feito o abraço. Veio ao mundo com um irmão gêmeo, como distinção só as tramas na vertical. O marido trouxe. Um para ela, a mulher, outro para a filha, o orgulho. Destinos tão diversos. Porém, cada xale era único, era um, era uma marca. A única semelhança: xale para a noite, para o brilho. Para a névoazinha que cobria a vastidão da Serra em noites de São João. Em uma, o xale vestia para as missas, os encontros da igreja, a missa do Galo, da Páscoa, da comunhão, em dias de luto, de dor, de guerra. Em outra, o xale vestia para os bailes, para as despedidas, cantorias na madrugada, para o orvalho do beijo ao amanhecer. Por duas gerações inteiras os xales sobreviveram. Um ficava no velho baú ao pé da cama. O outro, dobrado no cabide colocado no escuro guarda-roupa. Vidas distintas. Mulheres distintas. Em uma o vestígio da outra: olhar seguro, ombros delineados, pernas torneadas. Em ambas, o xale caia com ar de leveza. A vida corroeu-se aos poucos, levando graça, beleza, olhares alegres e sonhadores. O xale de ambas permaneceu. Cada um intacto. Fibra tecida sem vestígios de dor, abandono, lágrimas ou solidão. Seda entrançada de fios pretos e prateados, franjas balançando ao movimento. Na cadência das estrelas, enfeitando a vida. Xale para festa, somente...felicidade resguardada pela fragilidade de linhas seguras. |
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