QUASE
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Agliberto
Cerqueira
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Quando completei dez anos você era já uma menina crescida. Bonita e alegre. Tinha cabelos ondulados e compridos. Dia ou noite sua pele tinha mais brilho do que todas as peles das outras meninas. Mas, o que mais se reparava, de tanto que chamava a atenção, eram seus dentes muito brancos e aprumados naquele sorriso escancarado de gengivas úmidas e vermelhas. O rosto redondo e, no meio dele, um nariz fino, miúdo, e que amparava os olhos grandes, castanhos, no rosto moreno escuro. Marcando os vestidos curtos que usava já surgiam, promissores, os contornos acentuados de seus seios, de suas coxas grossas e de sua bunda ainda infantil mas inesquecível. Moça, ficou ainda mais linda e exuberante. Fruta madura prestes a ser espremida nos dentes até partir a carne e soltar o caldo adocicado. E a sua voz, para mim, agora um adolescente no início dos desejos, era o canto a me acalmar nas noites solitárias e seu rosto a imagem queimada na retina até o meu despertar, quando então te procurava e não a encontrava entre os lençóis. Havia um longo tempo e uma distância imensa entre nós. Invisíveis. Persistentes. Absolutos. E, por isso, você nunca me enxergou com os mesmos olhos com que eu me escravizava nos teus e que te perseguiam, alucinados, em todas as direções. Não decifrou meus pensamentos mais suaves que penetravam e vagavam minuciosamente no corpo que eu nunca vira. Não percebeu o meu amor cativo. O meu querer desesperado. Em sua carne, que aos poucos te transformava em mulher, se pudessem, todos os meu músculos cometeriam pecados e milagres assombrosos. Eu poderia lamber a sua pele e umedecer, em lavas de saliva, o seu brilho de chocolate. Beijar os recantos e as saliências do seu corpo e provar todos os seus sabores. Ficaria dentro de você a eternidade das noites até que sua alma sucumbisse sorrindo. Mas você nunca reparou no garoto, ainda imberbe, que pisava em todos os seus passos procurando respirar seu perfume e diminuir, como um deus, a distância que faltava para te alcançar. E quando ficou mesmo mulher feita, quando os homens mais velhos farejaram os teus cheiros, há tempos impregnados em mim, eu também acreditei, num desprezível momento de inocência, que poderia ser um deles e disputar a sua herança. Não percebi que a distância e o tempo entre nós aumentara e que você jamais notaria aquele homem em que me vinha transformando. Aquele que imaginara proteger-te de tudo. Aquele que te desejara para sempre. Que te amaria muito mais do que qualquer outro. Que te daria os melhores filhos. Justo eu que era ainda um filho de minha própria mãe. E, enfim, antes de mim e antes de muitos outros, alguém a tomou. E você desapareceu levando consigo meu único sonho. Deixando que eu a esperasse com os olhos fixos na esquina. Hoje, velho e encarquilhado, na varando da casa onde sempre a esperei, há uma mulher desconhecida que me acomoda, todos os dias, numa desgastada cadeira de vime, forrada de almofadas para não ferir minha pele frágil. Deixa-me aqui a tomar o sol da manhã. Uma manta cobre as minhas pernas e, às vezes, cai no chão e fica por ali até que a mulher volte e me cubra novamente como seu eu fosse criança outra vez. Minhas mãos estão secas e inconsequentes e quase não domino meus movimentos. Me acompanham a brisa, a saudade e as pessoas que passam na rua e que não significam nada para mim. Mas num desses dias, ao forçar as vistas atrás dos óculos para ver sempre as mesmas coisas, as mesmas janelas e portões, os mesmos pássaros que ciscam sem medo a minha frente, tive a impressão de ter visto você na calçada oposta. Assustei-me violentamente como se recebesse um soco pelo lado de dentro do peito. Senti um calafrio insistente em ossos e nervos há muito esquecidos e, a princípio, não acreditei na imagem que os meus olhos teimavam em distinguir. Mas o meu coração disparou como sempre fizera a cada vez que te pressentia. Uma alegria instantânea e incontrolável. Eu podia sentir o seu cheiro, ouvir seu caminhar e saber da sua presença, muito, muito antes de você surgir. E eu vi os mesmos olhos grandes da menina só que distantes e melancólicos. Os mesmos cabelos só que ralos e brancos como seus dentes um dia haviam sido. A mesma pele que sempre cobrira seu corpo mas sem o brilho de antigamente e maltratada pelos talhos do tempo. Nem percebi se havia dentes aprumados em sua boca de lábios murchos e sem cor. Seu corpo sucumbira à idade e sumia esquálido dentro do vestido roto. Não havia mais seios, nem coxas grossas, nem bunda saliente. Seu sorriso desaparecera. Tudo fora devorado pelo tempo que jamais pedira permissão para penetrá-la. Vinha você enfraquecida e alheia ao mundo, como um trapo velho, amparada por um menino de uns nove ou dez anos. A mesma maldita idade de quanto descobri te amar. E mais uma vez você segue sem me perceber. Um velho solitário, esquecido e que gasta o tempo olhando pessoas porque não há mais o que fazer a não ser remoer o passado e esperar, pacientemente, a escuridão devastadora que nessa idade já não há porque temer. Porém, desta vez, num impulso desesperado, tento um aceno para chamar sua atenção mas as minhas mãos não se movem, apenas meus dedos tremem um pouco, delatando minha estúpida intenção. Busco gritar seu nome e dizer de mim, quem fora, o quanto te amara, mas minha garganta só balbucia grunhidos entornados de baba e as palavras ficam ecoando solitárias e abafadas em minha cabeça. E pensar o quanto eu tinha a lhe dizer. Mas agora somos dois pedaços de carne envelhecida e sem importância para o que resta de nossas vidas. Inutilmente, cada um com suas sobras mais amargas, vamos sonhando com um tempo que não houve e que agora, arrastado, custa chegar ao seu final. E enquanto você passa meus olhos úmidos e agoniados te acompanham pela última vez. Não prestamos mais um para outro. Você já está quase morta e eu quase nunca existi. |
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