Tema 179 - QUATRO ESTAÇÕES
BIOGRAFIA
QUATRO VEZES ISABEL
Sharon Ratis

Era um fim de tarde de primavera, daqueles que, de tão belos, nos empurram para fora de casa. Encontrei-me com minha melhor amiga, em um barzinho próximo da casa dela para tomar umas bobagens e conversar algumas besteiras. Nós duas gostamos muito de animais e não pudemos tê-los quando éramos crianças. Agora, adultas, tínhamos gatos. Eu tinha seis, ela já estava no décimo. Acho que conversávamos sobre isso.

Lá pela terceira cerveja, ela chamou minha atenção para um cachorrinho preto, pequeno, que estava do outro lado da rua. O bar onde estávamos era daqueles que colocam as mesas na calçada. Tínhamos acabado de pedir uma porção de provolone e já estávamos começando a sentir o efeito do álcool. O cachorro tinha acabado de tentar entrar em um estacionamento e de escapar de um chute do vigia. Ela chamou o cão, que atravessou a rua, curioso, mas com o rabo entre as pernas e se sentou ao lado dela.

- Se ele ficar aqui até a gente terminar, levo ele para casa. O coitadinho está muito judiado.

De fato, estava. Nunca vi um cachorro tão magro e sarnento. Seu olhar, como o de todos os cães, era pidão. Ele pedia carinho e ganhava nacos de provolone. É claro que ele não iria embora. Minha melhor amiga pediu uma cadeira para o cachorro sentar. Em seguida, ligou para o veterinário:

- Tudo certo. Ele ainda está na clínica. Vamos pedir a conta e levá-lo para sua primeira consulta.

Sarna, micose, pulgas e desnutrição. Fêmea, ganhou o nome de Isabel. Logo se via que a melhor amiga não entendia nada sobre o sexo dos cães. Pediu que dessem um banho, vacinas, comprou toda sorte de cacarecos para cachorro e a levou para casa. Vivem juntas até hoje. Inseparáveis. Dormem na mesma cama. Cara de uma, focinho da outra. Dizem que as pessoas ficam parecidas quando passam a viver muito tempo juntas. Acredito que isso também se aplique a cães.

Minha intenção, quando liguei para minha amiga era só de participar de um bazar beneficente em prol dos animais abandonados. Eu havia recolhido restos de remédios e jornais velhos por vários meses. Pegamos um táxi e combinamos de comprar os presentes de Natal por lá mesmo, o que seria mais uma ajuda para os animais.

Depois de entregar os jornais, perdi minha amiga de vista. Eram canecas, canetas, camisetas, cartões, tudo com o logotipo da instituição e com desenhos de vira-latas. Não me lembro de como comecei a conversar com uma das voluntárias sobre meus gatos. Ela me contou que recolhia animais nas ruas e tentava arrumar um novo lar para eles. Naquela semana mesmo, ela havia encontrado uma cachorrinha preta e sarnenta andando sem rumo. Mesmo sem espaço, recolheu-a e a abrigou em sua cozinha.

Quando dei por mim, já havia encontrado minha amiga e estávamos a caminho da casa da voluntária. Esquecemos o bazar. Ao ver aquela coisinha pequena, toda machucadinha e de olhar triste, tive certeza: aquela era a cachorrinha que eu sempre quisera ter. Era a minha Isabel.

Sob um sol de verão senegalês, levei-a ao veterinário. De banho tomado, vacinas aplicadas, já medicada e alimentada, pela primeira vez, Isabel dormiu em uma cama quente e limpa.

É difícil trabalhar o sábado inteiro e voltar para casa, cansado, gelado até os ossos, castigado pelo inverno mais frio dos últimos dez anos e, ao abrir a porta, dar de cara com um estranho andando pela sua sala com pose de dono da casa.

O estranho, no caso, era um vira-lata todo feridento que minha esposa chamava de Isabel. Era o que me faltava! Ela devia achar que ter dez gatos era pouco. Arrumara uma cachorra. Ela dizia que seria por pouco tempo, só até achar um dono. Sei. Já batizara a cachorra e queria que eu acreditasse nessa conversa fiada! Só sendo muito trouxa mesmo.

Saí do banho, nem sinal da cachorrinha. Quando entrei no quarto, pensando no justo descanso que me aguardava, vi aquele montinho de pêlos e feridas, enrodilhado e deitado na cama, no meu lugar, ao lado de minha mulher, que sussurrava como em uma prece:

- Meu Deus, por favor, se alguém tiver de pegar sarna nessa casa, faça que seja eu...

Já conformado, pedi licença e, sob os olhares contrariados de minha esposa e da cachorrinha, deitei-me para dormir.

Essa história aconteceu há tanto tempo que nem me lembro mais. Chovera o dia todo. Não aquela chuva forte, mas aquela garoa chata, típica do outono que, além de molhar, te congela os ossos. Principalmente se você for um cão e tiver de dormir nas ruas. Cada vez que me aninhava sobre um papelão, chegava um mendigo e me colocava para correr. Eu estava com fome, encharcada e com frio.

Nem sei dizer a quantas horas perambulava atrás de alguma coisa para comer quando senti alguém se aproximando. Coloquei meu rabo já abaixado entre as pernas e me preparei para outro passa fora.

- Oi, cachorrinho. Está perdido, é ? Tão molhado, coitadinho. Tão magrinho.

Era comigo que aquela lourinha falava. Sua voz não parecia ameaçadora. Olhei-a ressabiada. Ela se aproximou e me pegou no colo.

- Vou te levar ao veterinário. Essas feridas estão parecendo sarna. Vamos ver o que podemos fazer por você.

Naquela noite, aprendi mais coisas do que poderei aprender pelo resto de minha vida. Descobri que os seres humanos podem ser bons, que o veterinário é o homem que te aperta e te fura toda, que existe água morna, que não preciso mais comer tão depressa quanto eu consiga, pois ninguém vai tirar a ração de mim. Aprendi que se há mãos que batem, também há as que acariciam. Que vou dormir em uma cama quentinha com a lourinha pelo resto da minha vida. E que me chamo Isabel.

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor