O
IPÊ AMARELO | |
Maria
Luísa Rocha | |
Seu Antônio era do signo Escorpião, nascido no dia dos finados, 2 de novembro, aliás, dia do falecimento de sua mãe, oito anos depois de seu nascimento. Completara noventa e oito anos, dos quais, após a viuvez, vinte anos morando sozinho, com uma vidinha estupidamente cronometrada. Acordava às oito horas, bebia um copo de café com leite, comia torradas e um pedaço de bolo. Fazia sua higiene matinal, que consistia em lavar a dentadura e ajeitar os cabelos ainda negros e lisos, herança de sua avó guarani, do sul do país. Preparado para sair, enfiava umas duas bananas no bolso da calça, fechava a porta e ia para o centro da cidade, de ônibus. Voltava na hora do almoço, que consistia, invariavelmente, de arroz, feijão, repolho, batata e carne moída, preparado pela Joaninha, uma espécie de empregada, mas que era mesmo uma dama de companhia para o velhinho. Seu Antônio ia dormir a sesta, ouvindo o rádio tão antigo como ele. E, durante este tempo todo, fumava incontáveis cigarros, queimando as pontas dos móveis, os dedos e os lábios finos e já arroxeados. Quando se levantava, lá pelas três da tarde, outro ritual no banheiro e mais café com leite e torradas. De novo, outra saída para o centro da cidade, de ônibus. E, em certas épocas do ano, ele comentava com o trocador que já era primavera porque havia no percurso algumas árvores cheias de flores amarelas. Seu Antônio era encantado com flores e passarinhos. E detrás de seus olhos embaçados pela catarata, apreciava esta beleza e até rezava agradecendo a Deus, cheio de timidez. Quando anoitecia, ele preparava o jantar, que era idêntico ao almoço, tirando as porções das panelas que estavam na geladeira e colocando tudo em um prato fundo que era levado para o fogão, em cima de uma panelinha de pedra, em banho-maria. Comia com apetite em frente à televisão. Invariavelmente, após várias consultas ao relógio no pulso e ao da parede, assim que percebia que já eram onze horas, com sono ou não, seu Antônio recolhia-se ao quarto para dormir. Rádio ligado e vários cigarros embalavam seu sono. Às vezes, de madrugada, levantava-se para ir urinar e sabia quantos passos teria que dar até chegar ao vaso. Adorava contar e não se esquecia nunca do número exato para percorrer o destino. Não dormia de pijama, preferia dormir de roupa mesmo, só tirando o cinto e as meias e os sapatos, claro. Assim os verões, os outonos, os invernos se confundiam em uma só sucessão de dias milimetricamente iguais, para alegria e equilíbrio das inocentes compulsões do doce velhinho. Só o amarelo dos ipês demonstrava que alguma coisa diferente estava acontecendo ao seu redor. E seus olhos brilhavam e ele comentava tanta beleza, ora com o trocador, ora com o passageiro do lado. Quando ninguém lhe dava atenção, falava sozinho. E acendia mais um cigarro, fumando até o toco, até queimar o dedo. E não sentia nada, só aquela alegria íntima e real de quem reconhece a primavera. | |
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