Tema 179 - QUATRO ESTAÇÕES
BIOGRAFIA
GÜENTA
Eduardo Prearo

Inverno.

G. ingeri um antídoto que o faz parar de pitar. Faz frio, mas nem tanto quanto esperava. Pensa em ir até ali, mas está com sono. Sente muito, pois sabe que trará sofrimento a certas pessoas, e também a si mesmo. É pecador. E hoje de um a dez o pecado nele está 9.9. Olha da janela a mesma vista de sempre. Os pássaros que sempre vêm cantar nesta época do ano não mais o incomodam. Causa riso nos seus fantasmas. Agora agüenta as reviravoltas que costuma haver em todo lugar. Com a Lei Seca dirigem nervosos, velozes. Alguns, só alguns. Precisa de alguma coisa, a noite avança, os dias são tediosos. Precisava do carinho de antes, mas acabou. Não, não é possível que aqui só tenha fdp, pensa. Merecimento, mas acha que se auto ajuda pouco. Talvez não. Há tantos cursos gratuitos por aí. Se agredir alguém agredirá a si próprio, portanto, também tenta se controlar. Chamam-no de limão, isso deve ser natural. O menino estava sentado de perna aberta enquanto ele passava; o menino levantou-se para escarrar um escarro daqueles gigantescamente sonoros; o menino ouviu algo então de G, e deve ter ficado profundamente satisfeito. Eles se revoltam contra a falta de virilidade, mas não se sabe ao certo de quem; vai ver a dele, a dele mesmo. Vai ser feliz quando e aonde? Sou feliz, sou feliz, repete. Mas é mesmo? Ai, vão acabar internando-o. Final de agosto, e ele entra no todo mundo quando põe mês oito em vez de nove no lembrete para um compromisso. As coisas estão caminhando, tranqüilas, mas insistem em mostrar-lhe de alguma forma o quanto é não-bonito ou errado.

Primavera.

Equinócio. Flores e mais flores. G. tenta ver a beleza da cidade; aliás, acha que tentam ver a dele também, ou a que restou dele (sim, achava-se bonito). Dizer coisas assim como "estou na merda" provoca muitos risos. Sim, em gente desconhecida, que o encara parece que com medo. Cruz credo! Vai ouvir o que não quer. Misericórdia. Acende ou não aquele incenso? Irresponsável. Pensou nisso, nisso de acender o incenso, nos microorganismos astrais. Não tem grana pra comprar o leite. Agora quando pode (que pouca vergonha!), compra-o no posto de gasolina. Deixou de ser vegan. O ano finda, as rosas não chegam a florescer, há mistérios pelo ar; certas mulheres o incomodam porque o põem no abismo, mas estão certas. Mutilações, dessas que falam, atormentam-no. A saúde das flores, pelas saúde das flores. Só atrapalha. Acha que atrapalha, que dá nozinhos ou nozões nas gargantas. Ih, o verão está chegando, mas faz frio. Nao é por causa daquilo, daquela coisa que denominam aquecimento global. É um frio de febre. Daqui a cem anos a cidade estará tão linda! É, prevê, e como prevê. Tudo estará rápido. Dá medo enfrentar a solidão sem ser santo. Todos os dias alguém sorri para ele, e mal sabe o porteiro que o boa noite não é pra ele, mas para o Jesus em uma gravura pendurada da parede. Jesus sorriria para ele?. Se atores são para alguns gado, cantores são o quê? Ser aceito...sentia-se quando era o outro, o importante. Às vezes ainda é o outro, o importante. Céus, como são importantes. O talento que não tem, aquela coisa artesanal, trabalhada dia após dia, como o talento para escrever, por exemplo, procede, mas não para ele. Só saberá mesmo que não é perseguido quando morrer; não há marcações cerradas, pelo menos visíveis.

Verão.


Delícia de praia. Pela primeira vez pôde viajar até esta praia. Mas no fundo o mar provoca-lhe cansaço. Nem todos esculpem o corpo hoje em dia. Passa o bronzeador fator proteção 100. Imagine, não é tão branco assim. Os homens teatralizam as olhadelas para os traseiros femininos, mas G. crê que talvez seja por instinto que eles façam isso. Veado. Já se passaram os trinta e oito minutos e quarenta e dois segundos de Four Seasons...Desliga o Ipod. É bom viver de recordações, mormente quando a vida foi bem vivida. Mas como saber, como saber se ela foi bem vivida? Quer mais. A areia é cor-de-rosa e brilha. Alguém liga, o celular vibra. É Emma, a amiga que não será sempre amiga, obviamente. Fofocas. Emma lhe conta que andam espalhando por aí que sua ex-mulher, e todos adoram a ex-mulher de G., acha-no um assaltante: roubava as coisas dela e vendia por aí. E também que ela lhe deu um chute na bunda por causa desses furtos. Disse-lhe: chega, vá embora, vá embora, seu vagabundo! G. tenta se lembrar de algum furto, afinal casou-se em comunhão de bens e Ághata não tinha nada de valor. Bom, mas se é assim que as pessoas lhe vêem, paciência. Talvez realmente ele não seja uma pessoa muito confiável, pois dizem que intuição feminina não falha! E além do mais, está só, completamente só. Existe punição pior do que ser solitário por causa de fofocas, coisas que nunca existiram? Mas a fofoca da ex-esposa lhe espancar não é de toda inverdade. Enquanto contempla o horizonte, acha que o considerarão um grande fofoqueiro. Sim, ele tem milhões de fofocas para contar, mas para quêm, para Emma, que acaba de desligar o telefone na sua cara? E quem é ele para julgar alguém?

Outono

A restauratrice realmente forneceu proprina para os penetras calarem a boca, principalmente à Gina e a Mh, dois dos principais penetras que tem raízes em São Paulo e são indestrutíveis. As pessoas em São Paulo são capazes de acabar com a vida de alguém de uma forma muito peculiar. Enfim, têm estrutura para tal. As folhas caem; sim, caem, afinal é outono. Cai também o preço do feijão e o do álcool. Acham-no um caipira. Veste-se mal, acha-se feio, ralam feito idiotas. Emma teve sorte com psicanalistas; a G. só restam as psicólogas dos bairros afastados. G. continua só; sente-se um doente assim, só, abandonado. Se ao menos tivesse algum dom, alguma coisa paranormal! Mas não, seu carma é permanecer sozinho até que as coisas afundem mais, e perceber a cumplicidade alheia com relação a ele. Ou então o desprezo. MENOSCABO TOTAL. Deve provocar ataques de riso ou de compaixão. Existe ataque de compaixão? Sim, e esses são os piores. Hoje não foi à missa, àquela missa onde todos se dão as mãos e cantam. Haja paciência, também. Mas é uma pena. Foi ao médico na semana passada, e este lhe disse que o que ele queria, uma palmilha, era pura vaidade. "O senhor tem só 42? Está bem acabadinho hein!" Pra quê palmilha, pra quê aprender francês, pra que sair deste buraco chamado Brasil, pra quê tentar a vida em outro lugar, pra quê, pra quê, pra quê? A vida é só isso e ele não é nada. O coração dessa populaça desconhecida é tão grande!, é isso que lhe dizem. Sim, afinal viva e deixe viver, como diz a Bíblia. Não, ele não vai agüentar amanhã, segunda-feira, não vai agüentar!

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor