AQUI
NÃO TEM DISSO NÃO | |
Edith
Piza | |
... bambu estalando ao vento já de fim de agosto. "O calor está chegando" - pensa, enquanto acelera a marcha do cavalo que puxa a charrete. "E o trem, também" - completa o pensamento. Dona Indira está chegando, linda e perfumada como um verão com chuva, a voz profunda de mulher educada, os cabelos longos, negros, que ondulam ao vento de fim de agosto. Ele não quer pensar em dona Indira, que não é pra ele, mas pensa, pensa e pensa, como se fosse um vício. O trem se aproxima da estação resfolegando, patinando nos trilhos, soltando fagulhas, fumaça e vapor. O chefe da estação grita para dentro dos vagões que vão parando: "Quarta estação! quarta estação!", mesmo que na tabuleta que decora a entrada do prédio pequeno esteja escrito bem grande São João do Ibiatinga. "Então, por que quarta estação?" - pensa o moço que vem buscar dona Indira. E ela desce do trem e ela pára na plataforma e ela vira a cabeça e ela olha em torno e o coração dele, aos pulos, saltos e solavancos, vai ganhando coragem para se aproximar da morena alta e elegante que espera impaciente. Ele vem por trás dela, que pela frente não agüentaria o olhar de índia braba. "Dona Indira" - gostaria de sussurrar, mas fala alto. Ela se vira e o perfume dela chega até ele e ondula a envolver tudo. "Seo Ângelo!" - ela sorri e estende a mão - "como vai? Tudo bem lá na fazenda? Vamos que estou cansada... este trem..." e ele deixa de ouvir para acompanhar, disfarçado, o movimento lento e preciso do corpo dela. E volta a si, de um lugar muito distante, para responder: "ta, dona Indira, ta tudo bem. Vosso pai manda voltar logo. Ta com saudade". Ela retruca "Então vamos. Também sinto saudades" e ele pensa que ela olhou para ele, quando disse a palavra saudade. "...para de bobagem, Ângelo, ou tu vai acabar louco" e se apressa em pegar as malas e arrumar a bagagem na charrete. Voltam pelo caminho da vinda, mas agora ele nem presta atenção. "Sorte esse cavalinho conhecer o caminho que, por mim, estou entregue a ele..." Ângelo quer chegar logo, quer que o tempo voe, que já seja fim de verão, outra vez, quando dona Indira volta para a casa na cidade. "Que vá logo embora, que volte de uma vez para a casa dela e me deixe em paz!". De repente, a voz dela abre uma porta na parede de silêncio entre os dois: "O inverno foi muito rigoroso, seo Ângelo? Fez muito frio? O pai sofre com o frio, coitado...". Ângelo limpa a garganta antes de responder: "Que inverno, o quê, dona Indira! Inverno nenhum esse ano. Nem vento frio, nem geada, só uma secura. Três meses sem chover! E um calor abusado! Uma tragédia pra lavoura, pro gado, pra nós...". Ela ouve, olha em volta e responde: "É, está tudo mudando, seo Ângelo... tudo fora do eixo. Mas quem sabe agora, na primavera..., lá na Europa chove muito na primavera..." Na sua aflição para não sentir a atração que sente pela patroa, Ângelo se apega a qualquer coisa que possa voltá-lo contra ela. Acha, no tom em que ela fala sobre a primavera e a Europa, uma brecha para desdenhar. Parece ao rapaz que Indira quer se exibir, ou humilhá-lo, ao comparar o clima daqui ao que ela viu ou vê na Europa. Sente raiva, um aperto. "Tudo aqui se perdendo e ela falando em Europa! Nem deve saber que aqui ainda é inverno... Exibida! Pela primeira vez Ângelo ri. "Mania essa de gente da cidade falar em primavera. E primavera na Europa? Aqui não tem dessas coisas, não. Nem primavera, nem outono. Ou é um friozinho mal e mal ou é verãozão de estalar mamona". Ele pensa e ri. Ela pergunta: "Eu falei alguma coisa engraçada?" O moço apressa o cavalo e se desculpa: "De jeito nenhum, dona Indira, só tava pensando aqui que nem é primavera ainda, e nem vai chegar. O que vem por aí é verão mesmo. Verão feroz, a contar pelo inverno". Indira olha em volta, sem perceber que o rapaz fala do medo da seca, da longa estiagem que se abate agora sobre a fazenda e do desemprego que vem com ela. Desavisada, Indira comenta: "Mas você não vê que está tudo florindo? Parece que a natureza está apaixonada, toda enfeitada. Olha a bauína branca, os ipês amarelos, o manacá da serra. Tudo está florindo... e o que não flore, refolha! Isto só acontece na primavera". Indira sente um mal estar com o desencanto que ele demonstra e tenta animá-lo, mesmo passando por ignorante. "É claro que ainda não é verão, mas é assim em climas tropicais ou que diabo seja... sujeito mal humorado!" - pensa e decide fechar a boca. Ele não quer saber de poesia, meio por vingança, por ela ser tão desligada de tudo que o cerca, por ser alheia a sua própria terra, mas principalmente por não notá-lo nem entender o que é importante para ele. Ângelo se ajeita no acento da charrete e diz num tom que nunca ousara: "Sabe, dona Indira, é tudo muito bonito e teretetê, mas pra nós o que conta é a chuva que cai do céu e o sol que esquenta a terra. Fora isso, a Primavera não visita a gente faz, ih! nem sei! E o tal do tio `Otono` se mudou faz tempo" Indira vai retrucar, mas percebe que o rapaz, sempre tão educado e tímido, desta vez lhe fez uma desfeita. "Que será que deu no Ângelo? Ah, deixa prá lá! De que adianta falar de estações do ano com esse capiau de fundo do mato?! A única estação que ele conhece é a Quarta e olhe lá!" Os dois seguem em silêncio, à sombra fresca, verde e perfumada do caminho. Cada um em uma estação. | |
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