ENTRE
GALHOS, SOMBRAS E QUINTAIS | |
Agliberto
Cerqueira | |
Apesar do frio insuportável que ainda fazia naquela manhã decidi que já era tempo de subir na árvore que ficava no quintal da frente da casa onde morava a menina que eu cobiçava e cujo fruto, um dia, me atraíra. Era uma árvore antiga, muito alta, com um tronco grosso e galhadas tão longas que alcaçavam os telhados vizinhos. A menina nem era tão bonita, trançava os cabelos claros, usava óculos de grau e era magrinha. Parecendo os galhos da árvore. Há algum tempo despertara em mim a curiosidade e o desejo de roubar seu fruto, tocá-lo, abri-lo com os dedos, morder sua carne e lambuzar-me com o sumo. Porém, devia tomar cuidado com os donos da propriedade: viviam espantando os meninos que andavam pelas imediações aguardando o momento para tentar invadir o terreno. Principalmente por esse tempo, após o primeiro ciclo das chuvas, e logo depois que as folhas se multiplicaram formando uma copa emaranhada e escura que protegia com sua sombra a entrada da casa da menina. Foi também por essa época que ela deixou de sentir vergonhas. E quando sozinha, sem os pais a vigiarem seus passos e pensamentos, passou a subir na árvore quase que todos os dias. Virou um vício. E até então, por medo, nenhum dos meninos da rua conseguira se aproximar do estreito e frágil portão que há anos fechava a propriedade. Determinado, andei em direção ao muro que separava nossas casas com os olhos fixos na árvore. Tremia pelo vento frio que torturava o meu corpo e pela delícia do gozo matutino ao imaginar a aventura em que estava me metendo. Encostei-me aos tijolos descascados e, num salto rápido e silencioso, sentei-me em cima do muro. Respirei fundo e escorreguei como um verme calmo em direção ao chão. Agachei-me e rastejei rente à grama e fui em direção ao grande tronco cada vez mais próximo. Num instante conquistava a árvore e já subia ligeiro por entre seus galhos e cheiros de folhas frescas. Só aí, quando olhei para o alto, tonto pela vertigem, me dei conta de seu tamanho descomunal. Era imensa. Linda. Profunda. Estudei sua geografia e iniciei a exploração agarrando-me aos galhos mais fortes. As folhas umedecidas pelo orvalho começavam a secar. O sol penetrava ardente e quebradiço banhando a folhagem, criando a ilusão das cores, e eu continuava minha escalada até ao topo. Ao chegar lá em cima pus minha cabeça para fora da copa admirando o infinito tão perto e as casas ao longe com seus telhados sujos e marrons. Caminhei por todos os galhos. Descobri recantos inexplorados. Insetos repugnantes. Ninhos fétidos. Senti o limbo na palma da mão. Cócegas nos pés. Porém, foi tamanha a minha alegria, mistura de medo e liberdade, a sensação do poder que, indecentemente, ignorando os olhares atônitos dos pássaros, resolvi mijar. Como um menino estátua empinei o pinto e distribuí minha urina amarela, morna, fumacenta, para lá e para cá diversas vezes, como se estivesse regando um amplo jardim. Um êxtase ouvir o som da água estalando em sua queda e ver o líquido brilhando entre os raios de sol e espatifando-se em milhares de gotas, molhando folhas e madeiras, impregnando com meu cheiro o território que agora supunha meu. Sorri satisfeito e aliviado com minha atitude desafiadora. Faltava agora apenas espetar o canivete na carne para gravar meu nome. Depois seria o tempo de ir embora. No entanto, ao me preparar para a descida, vejo a menina, lá no chão, aproximando-se e preparando-se para subir. Bem mais ágil do que eu agarra-se nos galhos mais baixos e, automaticamente, escala caminhos seus conhecidos de todos os dias. Procuro ocultar-me esgueirando-me silenciosamente até as pontas mais distantes e onde as folhas pudessem acobertar-me. De onde estou acompanho todos os seus movimentos felinos e me imagino invisível. Ela aspira o ar com volúpia e repetidas vezes. De repente pára, desconfiada, olha para todos ao lados atentamente, chega a fixar seu olhar em minha direção mas não me percebe. Ainda que duvide, quer ter a certeza de sua solidão. Convence-se enfim, mas, inconscientemente, sabe que nunca mais ficará sozinha. Ela não é mais a mesma menina. Por algum motivo a árvore também não é. Novos perfumes exalam de seu corpo, da sua casca e da pequena flor, solitária, que já começa a se abrir oferecendo seu mel e seu mistério para o ferrão mais afortunado. Então, como fazia todos os dias, dobra diversas vezes para dentro o cós da saia comprida, encurtando-a, e suas coxas brancas brotam enraizadas na confusão da minha mente e no meio dos galhos retorcidos. Leva as duas mãos atrás da cabeça e liberta os cabelos da trança comportada. Tira os óculos e o coloca numa reentrância dos caules. Balança a cabeça com violência, para um lado e para o outro, até que seus cabelos claros cubram seus ombros e seu colo. A luz que penetra entre as folhas aquece e ilumina seu corpo e agora ela é a própria árvore onde, escondido, incha um fruto, verde, contido pelo marasmo do tempo e aprisionado pelo contorno das pétalas. Sossegada ela passeia pela árvore. Seus pés pisam nos mesmos passos onde há pouco os meus pisaram. Suas mãos apoiam-se nos galhos ainda marcados pelos meus dedos. E sua carne, indefesa, anda no meu caminho esbarrando nos meus cheiros. Vou seguindo-a com os olhos famintos, ergo meu corpo mostrando-me aos poucos como um fruto maduro e sigo silenciosamente em sua direção. Ela vai até o topo e tenho certeza que me pressente. Segura firme a ponta do galho mais alto mantendo as pernas separadas, apoiadas numa forquilha, bem acima de onde estou. Me aproximo ainda mais, cautelosamente, e já posso sentir o perfume dos seus cabelos entre as folhas. Estou colado atrás do seu corpo. Ela volta-se para mim e com ternura envolve o tronco em seus braços. Esfrega-se em minha casca rugosa. Então a chuva despenca inesperadamente aliviando-nos do calor descomunal. Lava a árvore e o nosso suor. Encharca a terra e escorre pelos telhados das casas levando para longe a sujeira acumulada do passado. Nossos corpos mornos livram-se das roupas desnecessárias e finalmente nos encontramos molhados, úmidos. Sou agora o inseto que cisca incansável dentro da flor. O pássaro que bica o mel. Ela, a fruta que nasce, vermelha, doce. A árvore fendida. A resina reparadora. A seiva veloz. E ficamos juntos durante horas, durante dias, por muitos anos, caminhando pela árvore de mãos dadas, misturando flocos de nuvens nas alturas, apanhando os pingos da chuva lá onde eles nascem, ouvindo trovões e tapando os ouvidos como se estivéssemos dentro deles, iluminados pelos relâmpagos, amando sob o sol e as tempestades por tanto tempo e com tanta fúria que nem vimos as flores vingando seus frutos. Um dia acordamos com o vento soprando forte e as folhas secas soltando-se dos ramos enfraquecidos. Percebemos, lá embaixo, o portão da casa finalmente aberto. O frio chegava mais uma vez e anoitecia rapidamente. Nossa árvore cada vez mais nua. As folhas caindo faziam uma dança de despedida para um outro tempo onde jamais brincamos. Parece que acenavam para nós e flutuavam em direção às casas vizinhas, forrando jardins e colorindo os telhados de amarelo e verde pálido. Somente nós permanecemos na árvore. Cada vez mais expostos aos ventos, ao frio e à garoa que batia insistentemente em nossos corpos. E então percebemos que era o tempo da separação. Ela foi a primeira a descer escorrendo pelo tronco até sumir feito pó pelos poros profundos da terra. Logo depois eu desci amparado pela noite e, à medida que caminhava, meus passos afundavam-se no barro. Seguíamos para baixo do limbo e já podíamos sentir o gosto do lodo nos cantos da boca. E foi aí que nossos olhos olharam-se pela primeira vez. E foi assim que nos vimos pela última vez. Nas sombras da noite, enquanto o amor agonizava agarrado aos galhos secos e gelados, o gozo fecundava o caroço debaixo das folhas podres esparramadas pelos quintais. | |
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