PINCELADAS | ||
Zeca
São Bernardo | ||
Sonhos... certa vez um velho amigo disse-me que transformar um sonho em realidade pode ter um preço muito alto! Sim, sim, muitas vezes o dito sonho torna-se um pesadelo. E quem passa pela aquisição da tal casa própria sabe muito bem o que é isso. Tanto trabalho, tanto dinheiro gasto, tanto empenho e tempo despendido e finalmente estamos no acabamento. Ora, vale a pena ou paga o preço do ridículo deixar escrito em algum lugar que o pedreiro recebeu o pagamento pelo serviço e o deixou pela metade? Metade dele, segundo sua arguta visão de pretenso mestre de obras, mas nas minhas contas de leigo nesta arte de fazer cimento, levantar paredes, deitar ao solo canos ou eleva-los aos céus sobre telhados o prejuízo foi e ainda é bem maior. Há o moral, por que todo mundo fica olhando para você com cara de dó! Há o prejuízo enquanto cidadão por que acaba-se descobrindo que as leis no máximo levarão o individuo á executar algum serviço comunitário. Sim, sim, a tal da pena alternativa. Pergunta-se, então, com que alternativa fica o sujeito que pagou, não viu o serviço ou a bendita cor do dinheiro de volta e se quiser que a casa não desabe sobre a casa vizinha terá que desdobrar-se e contratar outro que se diz 'profissional' e que tem a cara deslavada do mesmo canalha que te roubou. Serão irmãos, primos, parentes, conterrâneos, será a casualidade dos dados da genética ou serão os olhos cansados que reconhecem o problema que vem em minha direção e o inconsciente encontrou esta salutar maneira de me avisar? Vá bem, isso lá é com Freud e no momento tenho um problema com cores. Deveria, logo, basear-me em Van Gogh ou analisar o cubismo de algum ponto de vista que me auxilia-se. E tudo isso por que? Por culpa do distinto balconista da loja de tintas! Sim, outro que deveria ser processado por incitar todos que o procuram a desvendar o que realmente querem. Absurdo? Não, não caro leitor. Permita-me explicar-lhe de maneira mais prática: você já se viu diante de um daqueles catálogos de cores de tintas disponíveis? Não? Ora, não sabe você o que está perdendo. A incrível oportunidade de ficar completamente sem ar, sem razão e com a lucidez seriamente comprometida. Caso tenha essa necessidade empírica, aviso-lhe que não compareça a qualquer balcão achando ou certo de que saíra com o que pensou em comprar lá em sua casa. Primeiro o ouvirão, com certeza, demonstrando toda a atenção que você julga ser o mínimo. Depois abrirão aquele catalogo amplo e lhe mostrarão as possibilidades! E quantas possibilidades. Simplesmente queria pintar o interior da casa de branco e o sujeito começou a demonstrar, folheando o maldito álbum de cores as inúmeras possibilidades que caberiam no meu pouco espaço e no meu mais que apertado orçamento. Branco, sentenciei. Quero tantos galões de tinta branca. Branco? Perguntou-me, horrorizado - mas qual tom de branco o senhor deseja levar? Temos o gelo, o abissal (sim leitor, branco abissal... mas vem cá, abissal não é o nome dado a certas regiões profundas do mar, onde subentende-se não chega, ou quase não há luz, e sendo assim como pode existir um branco abissal?), o sintético, o ártico, o antártico, o nuvem e... ...não pensem que esqueci do marfim! Por que foi a última palavra que saiu-lhe dos lábios e entrou em meus ouvidos quando já estava de costas na porta da loja. Depois de muito pensar e recolher coragem voltei a loja, enfrentei o vendedor desaforado e sentenciei: branco. Claro, claro - disse ele - branco clássico. O senhor devia ao menos considerar o feng chui, murmurou enquanto buscava as latas de tinta. Consegui pintar a casa de branco e já que estas coisas sempre nos lembram outras ou alguém e mais especificamente nos lembram de alguém que passou por alguma situação semelhante, lembrei-me de meu avô. Analfabeto, entrado na casa dos setenta, usando grossos óculos de lentes verdes que nunca consegui entender o porque e que trabalhou metade da vida como pintor. Combinava cores só de olhar, o convidavam para orçar um serviço, pediam a cor que queriam ou para refazer a parede no tom do resto da casa e ele com sua simplicidade dizia tanto dessa cor, tanto dessa outra e a parede estava ou era pintada sem nenhuma policromia. Sem a necessidade de nenhum programa de computador realizar milhares de combinações após analisar dezenas de fotos para chegar a algum numero espantoso de possibilidades das quais o cliente vai escolher apenas uma. Outro dia escrevi a um pretenso editor um e-mail onde cobrava a remessa de antologias que são o meu direito e que, segundo ele, esgotaram. Bom, não? Nenhum pouco, esgotaram e doze autores terão que contentar-se com a segunda edição que não tem prazo de produção definida. A questão toda é muito simples, disse-lhe, não sei se sou anacrônico ou se sou cronicamente antiquado. Na minha opinião os autores tem que ter em seus arquivos a primeira edição de seu trabalho e não a segunda, terceira, quarta ou sei lá qual. O que estas coisas distintas tem a ver uma com a outra? Tudo. Nasci no subúrbio, lá me criei, nos idos dos setenta do século que findou-se. Adquiri poucos valores, mas lhes sou fiel até o último instante de minha vida e pretendo leva-los para o além - se é que existe um além, afinal, falam muito, mas nunca vi ninguém voltar e me contar nada! - acredito na palavra dada, na urgência de se servir ao próximo da melhor maneira, no pedido de desculpas sinceros quando se comete uma falha, coisas assim. Que caíram no mais absoluto desuso. Essa deficiência em aceitar que o mundo é dos espertos ou que nos deparamos com dezenas de opções para as coisas mais simples me arrasta para uma casualidade perpetua de imprevistos. Ás vezes acho que eu mesmo os gero e até com algum prazer. Talvez isso explique por que levei mais de um mês para retornar a loja de tintas. Talvez isso explique por que estou perplexo com as matérias sobre feng chui que ando lendo nas revistas voltadas para o público feminino que minha esposa trás para casa. Ou por que acho o cinza do reboque do lado externo mais claro que minhas paredes brancas, realmente encantadoras, e que promete ficar lá ainda um bom tempo. Pois pintaram o centro espírita cristão da rua de trás de branco gelo, a tenda de umbanda de um amigo meu de verde mata virgem, refizeram a fachada da igreja pentecostal do final da rua de azul, branco e vermelho. Dizem que sempre foi destas cores, só refizeram... acho, até, que usaram o tal branco abissal, azul celeste com certeza e o vermelho sangue. Amém, Jesus! Veio junto com a tinta um bendito catalogo de cores... Agora, fico aqui pensando se quem sofre com hemorróidas deveria pintar uma faixa laranja no banheiro para quando fosse evacuar as coisas transcorrerem mais tranqüilamente ou se devo pintar as paredes da casinha do cachorro de azul só para ver se ele fica menos negligente e espanta os vagabundos que andam roubando meu varal. Quem sabe uma ou outra parede do quarto de vermelho só para apimentar um pouquinho a relação. Á dúvida é: de que tom? | ||