OS FILHOS DA MÃE
Sharon Ratis
 
 

O que mais sinto falta da convivência com meus irmãos é dos imprevistos que aconteciam quando estávamos juntos. Minha mãe criou seus três filhos para serem mais do que irmãos: para serem amigos, unidos pela vida toda. Em parte, ela atingiu seu objetivo.

Apesar da diferença de mais de dez anos entre eu e meu irmão caçula, eu tinha certeza de que ele seria um parceiro para a vida toda. Se um matasse, o outro ajudaria a esconder o corpo sem maiores questionamentos. Certeza mais equivocada nunca mais tive. Mas isso foi depois.

Um dos maiores medos que passei na minha vida foi quando pensei tê-lo perdido. Não era exatamente o medo de não ver mais o meu irmão, era pior: era o medo de contar o fato para minha mãe.

Ele devia ter uns onze ou doze anos, eu já estava terminando a faculdade e tinha o costume de, às vezes, levá-lo comigo para as aulas. Nessa época, uma banda Heavy Metal da qual ele gostava muito, veio fazer um show em São Paulo. Fiquei penalizada por não poder levá-lo, ele não tinha idade para entrar na casa. E os dentes de serrinha de criança dele, faziam-no parecer ainda mais jovem. Agora estou lembrando: da última vez que o vi, ele ainda tinha os dentes de serrinha, mesmo homem feito. Sempre achei seu sorriso encantador por causa disso. Depois que ele virou o "Rei do Rock" (pronuncie o r como em caroço) lá para as bandas de Curitiba, nunca mais tive notícias. Isso também foi depois.

A tal banda faria uma tarde de autógrafos em uma loja de discos no centro da cidade, bem próximo de onde eu trabalhava. Algo que começaria por volta de umas quatro horas da tarde. Meu padrasto - pai dele - deixou claro que ele estava terminantemente proibido de ir para aquela bagunça. Quando ele me contou, respondi que daríamos um jeito, que ele ia, sim, chegar perto da banda de que tanto gostava. Já era o bastante ter de perder o show.

Da noite para o dia, arquitetei o plano. Perfeito. Sem falhas. Na tarde dos autógrafos, ele sairia para escola. Eu mandaria um bilhete para a professora dele, pedindo que o liberasse na hora do recreio para ir ao dentista. Ele sairia da escola, pegaria o metrô sozinho, desceria em frente à loja e me esperaria sair do trabalho. Como teria uma fila enorme para entrar e pegar os autógrafos, ele me esperaria na fila, assim, ganharíamos tempo. Logo que ele saísse do metrô, ele deveria ligar para o meu trabalho para que eu soubesse que estava bem. Eu o encontraria, ele veria a banda e iria para a faculdade comigo, assim, mesmo que a confusão da tarde se estendesse pela noite, não teria como minha mãe desconfiar de nada.

No dia combinado, ele devia me ligar por volta das quatro e meia da tarde. Já passava das cinco quando liguei nervosa para a loja e perguntei ao dono se ele não tinha visto meu irmãozinho por ali. O homem, que me conhecia desde criança, respondeu irritado que não tinha como ele saber de nada, que já tinham até quebrado a porta de vidro da loja. E desligou na minha cara.

Quando saí do trabalho, já tinha imaginado o pior: minha mãe descobriu tudo. E outras tantas possibilidades menos terríveis. Só tive noção exata do meu problema quando, de cima do Viaduto do Chá, avistei a loja, um mar de cabeludos e - à beira de um ataque cardíaco - a polícia montada. Pronto. Nunca mais na minha vida eu vou encontrar aquele moleque. Melhor nem voltar para casa. Qualquer coisa, menos contar para minha mãe que eu havia perdido o filho dela por conta de uma mentira tão bem planejada.

Não me lembro de como cheguei à frente da loja nem de quantas vezes dei a volta no quarteirão procurando por ele. E ele lá, quietinho, em um canto. Nem para estar na fila, o filho da mãe! No meu desespero, devo ter passado por ele diversas vezes.

Puxei-o pelo braço e fui furando a fila enquanto gritava com ele: por que você não me ligou, criatura ?

- Aconteceu um imprevisto: eu esqueci seu telefone em casa.

O medo de tê-lo perdido misturado ao alívio de tê-lo achado era tamanho que, em quinze minutos, passei na frente de todo mundo aos empurrões com ele, peguei os autógrafos e já estava dentro do metrô, a caminho da faculdade.

Foi quando o ouvi perguntar:

- Você pegou autógrafo para você também ? Mas você nem gosta deles!

- Peguei, sim. Quando um deles morrer, vendo e faço fortuna!

Com minha irmã, a diferença de idade é só de dois anos. Ela não chegaria ao ponto de me ajudar a esconder um corpo, se fosse necessário, mas também não me entregaria à polícia. Ao contrário do meu irmão, ela é o oposto de mim. Eu sentia ciúmes por ela ter sido a preferida da minha mãe até meu irmão nascer. Ela era estudiosa, organizada, caprichosa. Eu era desorganizada, desleixada, desatenta. Somos assim até hoje.

Trabalhávamos próximas, almoçávamos juntas todos os dias, íamos e voltávamos da escola juntas também. Um grude. Muitas vezes, durante o dia, ligava para ela para dizer nada ou falar bobagens. Ela trabalhava em uma imobiliária, eu, em uma empresa de informática. E telefonava séria:

- Tenho uma proposta irresistível para você: quer trocar uma casa por um computador ? E desligava, às gargalhadas.

Foi quando - depois de muitos anos - a Legião Urbana veio tocar em São Paulo. Nós já havíamos assistido a shows deles, mas eu nunca tinha chegado perto do Renato Russo. Novamente, da noite para o dia, arquitetei outro plano infalível. Tudo o que eu queria meu pai, era chegar perto dele. Não precisava autógrafo, foto, nada. Eu queria tocar nele. Abraçar Renato Russo era mais do que abraçar Deus. Minha irmã ? Ela gostava da Legião, mas só ir ao show já estava bom para ela.

Quem saísse primeiro do trabalho ia para a porta do hotel onde eles se hospedariam. Nós nos encontraríamos lá por volta das seis da tarde, horário que eles estariam chegando também. Renato Russo era conhecido pelo seu mau gênio e humor imprevisível.

- Não faz mal, falei. Se ele me der um empurrão, já fico feliz. Mas se ele parar para me dar um autógrafo e você ainda não tiver chegado, peço um para você também.

- Precisa não. Pode pegar só para você, eu não ligo.

Cheguei antes dela. Entrei toda afobada no hotel:

- Renato Russo está aqui ?

O gerente pediu que eu me retirasse. Podia até esperar por ele, mas do lado de fora do hotel. Quando minha irmã chegou, eu estava sentada na calçada, aos prantos, sendo consolada pelo manobrista.

- O que aconteceu ? Ele já chegou ? Ele te maltratou ?

Entre lágrimas, expliquei o que tinha acontecido. Ela se inflamou:

- Vou resolver isso agora - entrou no hotel pisando duro.

- Não tem mais jeito, eu vou ficar aqui até ele sair, vou dormir aqui.

- Não chora, moça, quando ele sair, sou eu quem vai buscar o carro para ele. Eu espero até você falar com ele.

Em menos de cinco minutos, ela chegou à porta, fez sinal para que eu me aproximasse:

- Eu liguei pro quarto dele, falei para ele que só tem nós duas aqui, se ele dá um autógrafo quando ele sair.

Senti o chão sumir. Foi a primeira vez que senti o estômago cheio de borboletas e libélulas se debatendo.

- Ele disse que se for só dois minutinhos, a gente pode subir lá no quarto dele, não tem problema.

Já no quarto, eu não conseguia parar de chorar. Ele brincou:

- Pára de chorar, menina!

Anos depois, quando ele morreu, minha irmã me consolou com as mesmas palavras: pára de chorar, menina. Dessa vez, ela também chorou.