O VÔO DAS LETRAS
Tânia Barros
 
 

Não estou louca. Estive o ano todo escrevendo um romance aqui dentro deste quarto. Cada dia uma lauda, no mínimo. Era o que exigia de mim para não ceder aos ditames da falta de inspiração, que muitas vezes apenas brinca de esconde com quem escreve.

A cada página digitada, revisada ao menos uma vez, eu salvava no computador, e num CD, depois imprimia no papel para ter o prazer do corpo crescendo em minhas mãos, algo muito erótico ao meu ver. Sim, considero delicioso tocar o objeto livro, lentamente folhear as páginas, sentindo a textura do papel, enquanto bebo seu teor, seu licor.

Esta rotina ajudava-me a viver e obviamente conduzir a história, tê-la sob meu domínio, mesmo que a idéia de dominar o texto para mim fosse apenas uma forma de falar. Muitas das vezes é o texto que nos domina, e este é um mistério sobre o qual prefiro não dissertar aqui. Faz parte mesmo de uma mística da ficção, talvez.

Sim, afirmo que não sou louca. Apenas conto que palavras jogadas no papel podem criar um enredo inesperado, uma coreografia magnífica tanto na alma quanto no corpo.

Ao fim daquele ano soberbo em relevantes descobertas de mim mesma nas possibilidades do viver e do escrever, meu livro estava pronto para ser divulgado ao mundo. Inclusive uma editora nada humilde desejava editá-lo, após alguns contatos e dois meses de espera, ao que me disseram ser muito bom, pois levavam mais de seis meses para dar o retorno, e em geral negativo. O tema revelava-se inspirador para nossos tempos de apatia e medo. Meus editores apostavam muito em novos autores com capacidade de inovar sem que isso significasse apostar num desses que acham que descobriram a pólvora.

Sim, estou bem consciente que dançar com a literatura é como dançar com o vento. Solitário está o autor, mas nem tanto, pois dialoga consigo mesmo, com seu imaginário e o coletivo. No entanto, estas abstrações são o que são: um verdadeiro encontro com o inefável. O inefável que toca o mercado, o produto, o vendável ou não vendável, mas ainda assim, mercado e, principalmente, arte.

Tudo pronto. O texto no prelo. Minha capa eu mesma definira e a idéia fora acatada. Ela teria de abarcar o inefável e o palpável.

No dia da foto, o fotógrafo estava no quarto, o ponto de vista seria o da janela que dava para meu quintal, meu jardim de cactos e azaléias, o qual olhei enquanto escrevia o romance, ali fora o lugar onde sentava-me com meu lap top, bem de frente à janela de madeira.

Era o segundo andar da casa. O assistente do fotógrafo jogou a cópia do romance em papel lá do alto. Na luz do entardecer daquele verão nascente, duzentas páginas bailaram sob minha cabeça lá embaixo. Eu dançava na coreografia do vento levando o texto - qual folhas caídas de uma árvore, qual rebento nascendo. De braços erguidos, vestido branco, simples, levemente rodado. Estava feliz, como numa brincadeira de criança.