CEMITÉRIO
DE CAVALOS | ||
Luís
Valise | ||
A placa na porta do meu escritório diz "Representações Plaza". Minha recepcionista e secretária, Cida, passa os dias lendo romances de amor, namorando na internet, e marcando encontros pelo telefone, mas é eficiente quando preciso. E discreta. Nunca perguntou de onde vem o dinheiro, embora deva desconfiar que da venda de meias, pijamas e cuecas não é, já que os raros pedidos que surgem são de pequenas lojas de subúrbio, ou do interior. E não é mesmo. Sou ex-policial, e nunca tive bossa pra vendedor. Meu negócio é outro. Helena me acorda às seis e meia da manhã. Abafo no travesseiro o bafo de cigarro e uísque. Quando chego na cozinha o caçula me espera, uniforme de escola limpo e bem passado. Helena é linha-dura: tudo na hora, tudo limpo, tudo certo. Tomo um café puro e quente, dou a mão ao caçula e vamos pro carro. Deixo-o na porta da escola, e vou pro trabalho. Visito grandes lojas do ramo, grandes atacadistas, e não vendo nada, mas não me deixo abater. Esse não é o meu trabalho. Quando policial, era linha de frente. Malandro não levava vantagem: - Teje preso. Ou, quando tinha reação : - Teje morto. Uma vez, um seqüestro. A família em desespero, os dias se passavam, as negociações não avançavam. O pai me chamou de lado: - Eu quero meu garoto vivo, custe o que custar. Tem jeito? O coroa era meio asqueroso, tratava a todos como capachos, acostumado a mandar, falar grosso. Era alto, largo, com quadris enormes, lembrando a anca de um cavalo.Estava com o cú na mão. Três filhas queridas, que não se comparavam ao garotão, seguidor de uma dinastia que ele acreditava imperial. Fábricas, negócios imobiliários, comércio, investimentos. Deixei o coroa suar mais um pouco. Era a chance da minha vida. -
Sempre tem um jeito. O olho do coroa brilhou: -
Quanto vocês querem? Mantive a calma: -
Trabalho sozinho. Perguntou, aflito: -
E quanto é? Arrisquei: -
Cem mil. -
Você garante ele vivo? -
Farei o possível. O coroa fechou acordo: -
OK. Cem mil reais. Arrisquei de novo: -
Dólares. -
Dólares? - Dólares. O coroa estendeu a mão. Seu aperto era forte, e queria dizer: cuidado. Redobrei meu trabalho. Gastei com informantes, vagabundos, gente que vive pelas ruas, até que surgiu uma pista. Um traficante pé-de-chinelo, um merda, disse ter visto um garoto bacana num barraco de favela, onde apanhava maconha pra vender. Viu sem querer, pela janela, de relance, mas todo corpo estranho chama a atenção, e o garoto era um corpo muito estranho naquele ambiente. Pedi a localização exata do mocó, e firmei o trato: uma nota de cinqüenta, e permissão pra vender o bagulho na boa. Fui pra casa, e passei a tarde brincando com o caçula. Helena estranhou: -
Não trabalha mais, hoje? Não entrei em detalhes: - À noite. Vou trabalhar à noite. Saí de casa por volta de meia-noite. Roupa escura, tênis, pistola carregada. E um silenciador. Fiquei dentro do carro até duas da madrugada. Entrei na favela andando devagar e sem vacilo. Becos estreitos, chão de terra, o tênis silenciava o passo. Achei o barraco, único com luz acesa. Encostei a mão na porta, ela cedeu. Meu coração parecia saltar pela boca. Apontei a pistola com o cano alongado pelo silenciador, e entrei. Nunca foi tão fácil. Um tranqueira dormia que nem criança, deitado num colchonete encardido. O revólver ao lado, no chão. No canto do barraco, outro colchonete. Alguém encapuzado, deitado de lado, braços amarrados nas costas. Mirei a cabeça do vigia, e o disparo abafado acabou com seus problemas. Apaguei a luz, ajoelhei perto do menino, tirei o capuz de sua cabeça e tapei sua boca com a mão. Ele tentou se debater, eu segurei suas pernas, e murmurei: - Quieto! Quieto! Ele parou. Levantei-o pelos braços, coloquei-o sobre meu ombro esquerdo e fui saindo, arma engatilhada. Na saída da favela soltei suas mãos, e pedi para não correr. Fomos caminhando até meu carro. Dentro do carro, enquanto dirigia, dei as instruções: -
Diga que você fugiu. O vigia pegou no sono, e você conseguiu fugir
do barraco sozinho. Na rua, você pediu ajuda a um carro que passava, e era
eu quem dirigia. Só diga isso, mais nada. De acordo? Caso contrário,
não sei o que poderá acontecer. Entendeu? -
Entendi. -
O que aconteceu? Fala pra mim. -
O cara que tomava conta do barraco pegou no sono, eu saí sem ele perceber.
Na rua, pedi ajuda, um carro parou, eu dei meu endereço, ele me trouxe
pra cá. -
Aconteceu algo mais? -
Não, só isso. -
Jura? -
Juro. Estendi a mão pro garoto: -
Palavra de homem? Pra sempre? - Pra sempre. Quando o escroto me viu chegar com o menino, caiu no choro. Os escrotos também choram. Abraçou, beijou, molhou de lágrimas, só dizendo: - Meu filho, meu filho, meu filho... A mãe e as irmãs também choravam. Os repórteres estavam emocionados. O garoto repetia a história duas, três, dez vezes. Os delegados faziam caras desconfiadas: - Que puta sorte ele deu, justo você passava por lá naquela hora, né? Eu concordava, enquanto dava entrevistas e era fotografado. Um herói. Concluíram que o vigia fora morto pelos comparsas, quem mandou dormir em serviço? Mas a verdade é que o ambiente para mim na polícia não foi mais o mesmo. Ninguém podia provar nada, mas a desconfiança estava na cara. Fui transferido para serviços internos. Logo eu, um linha de frente. Agüentei calado. Sabia que minha conta no banco era vigiada. Minha família era vigiada. Eu era vigiado. Helena não se conformava: - É muita injustiça! Você cumpre com seu dever, e esses babacas ficam procurando pelo em ovo! Eu contemporizava: - É assim mesmo, Lê, todos querendo aparecer. Eu dei mais sorte. Não se conformam. Depois de oito meses voltei pro serviço de rua, pra guerra, mas não sentia firmeza nos parceiros. Pedi demissão. A chefia agradeceu. Fui pra casa, passei uma semana grudado no caçula. Helena deu um toque: - Chega. O menino vai ficar mimado. Tenho a impressão que o escroto tinha esquecido, porque quando telefonei demorou para atender. E atendeu com displicência: -
Pois não, o que o senhor deseja? -
Cem mil dólares. -
Ah!, bem... Eu não sei... Preciso ver... -
Amanhã estarei aí. Quero em cash. - Espere, espere, não é assim... Desliguei. No dia seguinte a secretária quis saber: -
Do que se trata? -
De um emprego. -
Mas ele não... O escroto apareceu na porta da sala: -
Deixe-o entrar, Dona Norma. Entrei numa sala decorada com móveis pesados,
poltronas cobertas de couro. Fui logo encurtando a conversa: -
Como vai o garoto? Eu sabia que falar no garoto era tocar seu ponto fraco. -
Vai bem. Em seguida pegou uma sacola de lona debaixo da mesa: -
Está tudo aqui. Não me apareça mais. -
Preciso de um emprego. Não posso fabricar dinheiro. Me arranje um emprego.
O coroa tentou escapar: -
Impossível. Estamos cortando custos, reduzindo o quadro de... -
Vire-se. Peguei a sacola e me levantei: - Rápido. Urgente. Me ligue. Fui chamado pelo delegado-chefe: -
Por que você está trabalhando pro Dr. Honório? -
Por gratidão, chefe. Fiquei desempregado, tenho família pra sustentar,
e ele me ajudou. - Estamos de olho em você. O emprego não era ruim. Representante Comercial. Tinha que viajar. Comecei dando duro. Passava o dia andando pra cima e pra baixo, mostruários, mala pesada. Percorria o interior, mais de dez dias fora por mês. O pessoal da polícia foi ficando de saco cheio de me seguir sem resultado. Afrouxaram a vigilância. Acabaram desistindo. Aos poucos, comecei a trocar os dólares. Aluguei duas salas. Contratei a Cida. Melhorei a roupa. Helena melhorou a roupa. O caçula ganhou vídeo-game. Nenhum exagero. Afinal, eu passava os dias visitando clientes. Um dia, fiquei abusado: -
Helena, vamos tirar passaporte. -
Pra quê? - Vamos levar o caçula à Disney. Foi um alvoroço. Os preparativos foram o melhor de tudo, porque a Disney mesmo foi um saco pra mim. Pro caçula foi inesquecível. Ele é filho único, mas eu o chamo de caçula. Helena não pode mais ter filhos. Depois da viagem parece ter remoçado. Uma tarde, meu celular toca: -
Alô. -
Vítor, é Dr. Honório. O que o escroto ia querer agora? -
Pois não, Dr. Honório. -
Preciso falar com você, com urgência. -
Estou indo praí. -
Aqui não. Outro lugar. Conhece o Paxá Club? -
De nome. -
Sabe onde fica? -
Sei. -
Pode me encontrar lá às sete? -
Posso. -
OK. Isso fica só entre nós. Certo? - Certo, Dr. Honório. O Paxá Club é um lugar exclusivo, freqüentado por figurões. A entrada de mulheres é proibida. Meu nome já estava na lista de convidados, entrei num ambiente de luxo. O escroto me esperava sentado num sofá. Depois dos cumprimentos, me levou a uma mesa nos fundos do salão. Pediu uísque, e eu também. Acendeu um charuto, eu um cigarro. Foi direto: -
Estou com um problema. Problemão. Chegou a bebida, o garçom se afastou.
Abaixou a voz: caso de vida ou morte. Melhor você não saber. Teria
coragem de repetir o que já fez com aquele vagabundo na favela? Dei um
gole no uísque, traguei o cigarro: -
Seja mais específico. Dr. Honório ficou vermelho, apertou as mãos,
baixou mais a voz: -
Você sabe do que estou falando. Mais cem mil. O cara estava me pedindo para
matar alguém. Fiquei puto: -
Tá me achando com cara de pistoleiro? Ele não perdeu a calma. Os
ricos são assim. -
Não. Pistoleiro, não. Apenas acho que você poderia ser profissional.
-
Profissional o quê? - Por favor, vamos evitar certas palavras. Ambos sabemos do que se trata. Pense nisso. Fica só entre nós. É coisa perigosa. Muito perigosa. Mais cem mil. Agora me fale das vendas. O escroto mudou de assunto como se não fosse nada, ficou falando de volume e faturamento, qualidade e entrega, isso e aquilo, e eu calado, cabeça fervendo. O monólogo acabou depois do terceiro uísque. Saímos juntos, o carro dele chegou primeiro. Se despedindo: - É caso urgente. Me ligue. Cem mil. Nunca mais fui o mesmo. Tanto que, depois de pensar por dois dias, liguei pra ele: -
Topo. Duzentos. -
Cento e cinqüenta. -
Duzentos. - Filho da puta. Eu não fazia idéia de quem era o alvo. Ele só me deu o endereço, e uma foto. Comecei a seguir o cara com cuidado. Freqüentava bancos, corretoras e agiotas. Morava bem pra cacete. Se vestia com elegância, andava de BMW, e pegava garotos de programa no centro da cidade. Já que era pra ser profissional, ia aproveitar ao máximo: flagrante com um michê, extorsão, e depois de pegar a grana dava um jeito no cara. Mas as coisas não saíram assim: uma noite ele tratou um programa, o garoto subiu no carro, e foram pro bairro do Pacaembu, com suas ruas desertas e escurecidas pelas árvores. Me aproximei do carro parado numa sombra, e esperei. Quando ele estava com as calças abaixadas, ajoelhado no banco de trás, encostei a câmera no vidro e bati a foto. O flash iluminou sua bunda branca. Ele me olhou espantado, boca aberta, eu bati outra foto. O garoto abriu a porta do carro e saiu correndo ladeira abaixo. Eu comecei a negociação: - É o seguinte, seu puto: cem paus pelas fotos, ou sua patroa vai receber uma cópia... E foi só. O cara tombou de lado, olhos fechados, boca aberta e bunda de fora. Fulminante. Na hora de pagar, o escroto duvidou: - Como vou saber se foi você, mesmo? Joguei as fotos sobre a mesa, peguei a sacola de lona, e saí. É que nem a propaganda do sutiã: a primeira vez você nunca esquece. Agora não penso mais nisso. Alguns anos se passaram; as vendas estão melhorando. Dr. Honório já me encomendou outros trabalhos. Não quero saber a razão de tantos problemas, eles que são ricos que se entendam. Nem sinal de polícia. Comprei um apartamento classe média-alta. O caçula repetiu a viagem à Disney. Helena gostou de Nova Iorque. Foi com um grupo de amigas. Eu conheci a Princesa. Nunca tive problemas de consciência, nem faço mal pra ninguém. Quer dizer, não causo dor, nem nada. Já o escroto às vezes sente remorso, e precisa desabafar com alguém. Esse alguém sou eu. Cheguei no escritório, Cida falava ao telefone com ar de sonhadora. Ao me ver, desligou, pediu desculpas. Faço cara feia, mas no fundo não ligo. Ela veio até minha sala: - Dr. Honório ligou. Quer discutir as vendas deste mês. Espera o senhor às sete, no lugar de sempre. Fico imaginando o que a Cida acha dessas reuniões, que vendas serão essas, meu Deus? Chego no Paxá, já sou conhecido, entro direto. Ele está na mesa de sempre; uísque, charuto, rugas. Peço meu uísque. Ele me olha: -
Porra, como você consegue manter esse ar despreocupado? -
Não tenho com que me preocupar. Não devo nada a ninguém. -
Será que nunca seremos descobertos? -
Não. Dr. Honório, vamos mudar de assunto? Ele sorriu repentinamente: -
Vamos! Conheci uma garota espetacular. Mignon, cabelo curto, inteligente... - Não consigo imaginar o senhor com uma garota... Não perguntei mais nada, mas fiquei curioso. E armei uma campana pra cima dele. Quando a vi pela primeira vez, me lembrei de todas as canções de amor que conhecia. Isso às vezes acontece na vida de um cara, e aí ele está fodido. Eu sabia que estava fodido. Ela entrou do carro dele, e os dois foram a um motel. Uma visão de trinta segundos, mas para mim foi o que bastou. Saíram depois de duas horas. Levou-a de volta pra casa, um prédio simpático. Vi uma luz se acender num andar alto. A janela se abriu, a cabecinha de cabelos curtos olhou para fora, como se buscasse algo. Eu estava logo ali, bem embaixo. Uma das coisas que aprendi na polícia, e que faço bem, é seguir uma pessoa. Passei a seguir a Princesa, sempre que estava com tempo livre, o que não era pouco. Fui conhecendo seus hábitos, suas relações, e o que me chamou mais a atenção foi o fato de que ela não tinha namorado. Porque eu não considerava o escroto seu namorado. Ele era seu mantenedor, seu coroa. Nem amante eu admitia que ele fosse. Apenas provedor de necessidades materiais. E meti na cabeça que eu seria o namorado que ela merecia ter. Quando um homem se apaixona, ele só pensa besteiras como essa, e às vezes tenta realiza-las. Eu ia tentar. Liguei de um orelhão: -
Alô? Era uma voz delicada. Meu coração disparou. Tentei parecer
calmo: -
Quer ir a Paris comigo? -
O quê? -
Quer ir a Paris comigo? -
Quem fala? -
Você não me conhece. Quer ir a Paris comigo? - Você deve estar maluco! E desligou o telefone. Mas eu não desistiria tão facilmente, e depois de alguns dias liguei de novo: -
Alô? - Quer ir a Paris comigo? Ela desligou. Liguei várias outras vezes. Até que um dia ela riu: - Você deve ser louco, mesmo! Mas ela tinha rido, e de risada em risada acabamos conversando. Liguei mais, e tornamos a conversar mais. Eu estava certo. Ela precisava mesmo de um namorado. Nos encontramos a primeira vez num bar discreto. De perto ela era ainda mais linda. Ela pensava que eu fosse mais velho. Nos tornamos amantes. Eu tomava todas as precauções, e a seguia para ver se ela não estaria sendo seguida. Com o escroto todo cuidado é pouco. Ela nunca me falou dele. Sabia que eu era casado, e me aceitava assim. Passamos a vida inteira ouvindo falar de uma tal felicidade, mas raramente podemos vive-la de verdade. Com a Princesa eu vivia feliz. Até a Cida notou algo estranho: - Aconteceu alguma coisa, seu Vítor? O senhor está diferente... Coitada da Cida, com aquele monte de namorados, na verdade não tinha nenhum. Ao passo que eu, quietinho, sem dizer nada, tinha uma Princesa, minha Princesa. Daí que uma noite Helena disse que precisava falar comigo. Senti um arrepio na hora, fiz força pra esconder a ansiedade: -
E o que é? -
Você não vai gostar... -
Fala logo... -
Eu queria ir pra Nova Iorque outra vez. Posso? Todas vão... -
Não sei, Helena, as vendas estão meio fracas... -
Compramos a passagem em prestações! - Não sei... Tá bom, mas sem gastar muito lá, tá legal? Helena ficou contente, e eu mais ainda. No dia seguinte liguei pra Princesa: - Quer ir a Paris comigo? Ela quase desmaiou. Não sei que história triste inventou pro escroto, mas tirou passaporte, e contava o tempo nos dedos. Embarcamos quando Helena estava em Nova Iorque. Inventei viagem a trabalho, e minha mãe ficou com o caçula. Passamos uma semana em Paris, e voltamos mais apaixonados ainda. Ficar longe começou a doer. Eu tinha que falar com Helena. O caçula já estava grandinho, haveria de compreender. Cheguei no escritório logo cedo. Abri a porta esperando ver a Cida namorando ao telefone, mas ela lia o jornal, concentrada. Levou um susto ao me ver: -
Puxa, seu Vitor, que susto! A gente lê essas notícias, acaba sugestionada! -
E que notícia é essa, Cida? - Essa moça que morreu durante uma tentativa de assalto. Parou no farol com o vidro abaixado, o ladrão chegou, vai ver ela se assustou, tentou fugir, ele atirou. Na cabeça. Peguei o jornal, a foto da Princesa estava na capa. A manchete: "Morte Estúpida". Estúpida. Estúpida. Entrei na minha sala, fechei a porta, disse à Cida que não estava pra ninguém. Não chorei, e acho que foi pior. Passei um dia dos diabos. Nos olhos fechados, a imagem da Princesa rindo em Paris, dormindo no avião, dormindo em meus braços. Cida bateu na porta: -
Já disse que não estou pra ninguém, porra! Ela me olhou assustada: -
É o Dr. Honório. Ele insiste, insiste... Não sei mais o que
dizer. Atendi puto: -
Fala! -
Vítor, me encontre no Paxá. Preciso falar. -
Hoje eu não posso! - Mas eu preciso. Por favor, Vitor, eu preciso. E desligou. Como eu ia encarar o velho? Agüentar suas lamúrias pela perda da Princesa, quando eu estava sofrendo muito mais? Eu estava precisando uns bons uísques naquela noite, por isso fui. Na mesma mesa no fundo do salão, mantinha as mãos ao redor do copo. O olhar perdido num ponto indefinido não se moveu quando me sentei à sua frente. Não esperou meu uísque chegar: -
Você teria coragem de matar uma mulher, Vitor? Nem precisei pensar: -
Claro que não! Contrate outro! Sua voz parecia cansada: -
Já contratei. Achei que você não seria capaz. Senti um calafrio
percorrendo meu corpo: -
Contratou? Pra quê? Pra quem? -
Contratei... Agora estou arrependido, mas já é tarde... Agora é
tarde... Lembra que um dia te falei que tinha conhecido uma garota maravilhosa?
Te disse aqui mesmo, nesta mesa. -
Lembro, lembro, e daí? -
Daí que ela me apareceu dizendo que estava grávida. Eu fiquei maluco,
tenho mulher, filhos, uma vida respeitável... Ela disse que não
queria nada de mim, que jamais iria querer nada. Você acha que eu ia cair
nessa? Logo vi que teria trabalho... Pensão alimentar... -
E o que você fez? - Cortei o problema na raiz. Imaginei que você não teria peito pra fazer isso com uma mulher, e imaginei certo, não é? Arrumei alguém pro serviço. Está feito. Minha cabeça rodava num vendaval de pensamentos loucos. Então não tinha sido um assalto? E o escroto mandara matar também seu próprio filho, no ventre da mãe? Ele era pior que eu, que o outro, que todos os assassinos, profissionais ou não. Fiquei um tempão em silêncio. Ele perguntou: -
O que você acha disso? Eu me sentia esgotado: -
Mais do que uma covardia, que seria matar uma mulher, você matou seu próprio
filho. Já pensou nisso? -
Aí é que você se engana - e soltou uma risada eqüina
- não era meu filho porra nenhuma! A bandida tinha outro homem. -
Como você sabe? -
Eu fiz vasectomia, meu caro. Fiz há muitos anos, para evitar espertalhonas
como essa... O bastardinho não era meu. Fiz a pergunta, temendo a resposta: -
E você sabe quem era o outro? Ele tragou o charuto antes de responder: -
Não. Se eu soubesse, ele também tinha morrido. Levantei para ir
ao banheiro. Lá dentro vi meu rosto no espelho, e estava bem diferente.
Muito branco, e muito feio. Essa devia ser a cara de um assassino. O escroto tinha
mandado matar meu filho. Meu caçulinha. Senti que meu corpo foi ficando
frio. Insensível. Me senti um boneco vazio, sem carne, sem sangue, sem
alma. Voltei para a mesa. Ele terminava o uísque, e ia embora: - Obrigado, Vitor. Eu precisava desabafar, e tinha que ser com você. Não somos amigos, você sabe, temos uma relação muito especial. Não sei como definir. Mais uma vez, obrigado. O escroto tinha deixado algumas notas de cem sobre a mesa. Olhei-o se afastando, com seu corpo acavalado, seus passos esmagadores. Pedi outro uísque. E depois mais um. Fui embora quando meus cigarros acabaram. Helena me acorda às seis e meia da manhã. Abafo no travesseiro o bafo de uísque e cigarro. Tomo uma xícara de café quente e forte. Dou a mão ao meu caçula, vamos para o carro. Deixo-o na porta da escola. Chego no escritório, e pego Cida namorando ao telefone. Faço cara feia e entro na minha sala. Ela já sabe que não ligo. É só um jogo. Logo ela aparece e pergunta se preciso alguma coisa. Digo que não quero ser incomodado. Não estou pra ninguém. -
Nem para o Dr. Honório? - Nem para o Dr. Honório. Ela fecha a porta. Abro a pasta, tiro a pistola, deixo-a sobre a mesa. Pego a latinha de óleo, a escovinha, o silenciador. Tiro o pente da arma. Examino a munição. Começo a limpar a arma com cuidado, enquanto repasso de cabeça o plano cuidadosamente elaborado. Começou a caçada. Vou matar o cavalo de Gengis-Khan. | ||