CHAMARIZ
Eduardo Prearo
 
 

Desacertado quase que todo, prevê pedras na senda, se é que há senda, se é que há algum dó pra com ele, um meritinho. Transgressivo, mais um pouco luz ou cadeia. No sábado, mau, gula, bolo de chocolate devorado, barriga de repente saliente, e a mesma solidão da juventude, mas as razões parecem outras. Cara hodierno, odioso, antiquado, sem escape. No templo há escape. Agora avaro, no ar dança a punição ignota ainda. O simílimo é o marginal, não a flor que se escancara em cinza e depois é cinzas. O simílimo tudo de bom inexiste. Há o vício, o deserto e o oásis apenas no sonho. Encabulados não escrevem, destroem-se. Engavetado no futuro, melhor que exploda; é ele quem vai morrer ou então fragmentar-se. Bem sabe porque assim abaladiço, porque só e então desacertado. Ninguém o quer e isso importa porque ele não é santo. Se fosse, ah se fosse um, desses com estigmas de norte a sul! Mas é cereja podre, dessas que se joga no chão ao sair do mercado, depois somente mancha vermelha por causa de um pneu. O não-resolvido deixado pra lá, lá onde as radiações da bomba h são portas fechadas, cofres e seguranças. Os machos lhe parecem felizes e resolutos, mas nem sempre. Nesta manhã, pôs-se a dançar antes de sair, antes de sua história ser-lhe recontada através dos olhares alheios. Sacam-no pra bedéu. Enfim, pôs-se a dançar. Dançou balé. Pecador, pecador! The zephyr song. Primeiro cigarro aceso, nojo. Pediu perdão a todos os seres viventes. Da xícara, a fumaça de café prometia um dia bom. A praia estava vazia. Só havia John Sullivan, brincando com a areia. Filho, filho!

--- John Sullivan, já tomou o seu café?

--- Papai, papai, achei uma concha que é sua cara.

--- Ponha-a de volta onde estava.

--- Papai, aquela vizinha nova pensa que você me seqüestrou.
--- E é verdade. Não se lembra que o peguei de um conto americano de ficção científica?

De sonhos viver não é recomendável. Porém John Sullivan estava ali, trazido do conto de uma revista. Pegou-o pela mão pequenina e remodelou-se. Não cuspiriam mais pra ele, estava musculoso, viril. Os olhos, de um azul assombroso, sorria um sorriso feliz. A boca, da cor da cereja, um sorriso bondoso. Pra quem jamais amou, era tudo. Pôs John Sullivan de volta, foi dormir, acordou no início da noite e já sabia que iria devorar um bolo de chocolate. O dinheiro acabou: essas comidas especiais sem efeito! Melhor seria comer boi, vacas, galinhas. Na verdade está cheio de ir ao supermercado. Eles fedem, ele fede; os perfumes franceses são caros, mas emagrecem, terminam logo como os bolos de chocolate. Pensa em ligar pra Tatiane, mas ela, sacrilégio, prefere conversar com alguém que tenha cultura. Abre a lata de leite condensado e come-o às colheradas. Ainda faltam cinquenta minutos para meia-noite. Que dia, que dia curto, mas desagradável. É mesmo um bárbaro, deveria comer com as mãos. O problema é que não sentiu prazer ao devorar o leite condensado ou o bolo. Não, Tatiane não vai ligar. E também por que precisaria dela? O homem é positivo, os valores androcráticos vão sempre predominar sobre os gilânicos. Liga o rádio. Está horrorizado com a própria apatia. Ri. É praxe para com ele a apatia alheia, todavia. Inexiste mais calvo. Desliga o rádio, liga o televisor, tira as cores do filme: o preto e branco evoca amor, talvez glamour. B.J.Thomas. Imitava B.J.Thomas, mas ser artista sempre foi pecado no seu caso. Grogue após dez taças, cantava. Pra quê? Desviado! Hoje pela manhã, um beija-flor pensou que a flor artificial na janela era de verdade. Sinal que os beija-flores são visuais, e essa foi a grande descoberta do dia. Pensou em São Francisco, talvez reencarnação de Pedro, na representação da pureza como chamariz.