ERA
QUASE UMA LENDA... | ||
Araceli
Sobreira Benevides | ||
A cigana morena banhou-se nas águas do Guamá. O rio se encheu de vida e estrelas brilharam em plena luz do dia. Uma onda morna veio bater nos pés dos pescadores a pequena ilha escondida no meio das águas. Era quase dia, era fim da noite... O riso que cortou o ar, causou o mesmo impacto das flechas que o pequeno Curumim soltava na mata: assustou as graúnas, as araras vermelhas e o povo dali. Um risco azul acertou o céu, sobrevoando árvores acima na correnteza dos ventos. Era quase manhã... Como se o Dia previsse, acorrentou as horas e deixou virar céu vermelho antes no anúncio das cantadeiras. O peixe-Homem começava a se transformar, inconsciente da trama que o cingiria. A cigana mostrava a seda nas pernas que dançavam ao vento...Era quase festa: fogueiras mudavam o cheiro do ar e a cor da tarde...O canto da bruxa incendiava a atmosfera, o sândalo cobria as peles curtidas de sol, curtidas de terra... era o anoitecer que surgia na mata. Quem assobiou para as cigarras começarem seu repertório? Uma cotovia passou correndo...era o medo...era a ânsia. Tudo naquele mundo mudava de cor, de tom, de maré... O peixe-Homem saiu das águas, cheirando a mato, cabelos molhados. Ia buscar, na vila, a mulher para o aconchego da noite. O entardecer tinha se ido, mas parecia que agora mesmo tinha se modificado em ente da natureza. Quase nem descansara e a mudança recomeçava (Ele ficava triste quando o Sol descia para o outro lado...) Hoje, ele queria uma mulher orvalho, uma mulher descalça. As nuvens revelavam os olhos de suas amantes e elas gritavam de dor, escondiam os rostos nos lenços e fugiam para as casas de barro, desesperadas corriam para limpar a mandioca dos bolos para os dias de escuro. A cigana sorria, cativando os olhares das crianças sujas, era quase um sentimento de magia...A lua entrava pelas folhagens, o jasmim cheirava...era preciso água para molhar o rosto, esfriar os sentimentos que a fogueira acendia. No caminho, as pedrinhas brilhavam, os camaleões corriam, as cobras se encolhiam: a cigana não tinha medo da noite e deixava seus pés arrastarem as velhas sandálias de couro para espantar o Mal, o Espírito das Trevas. O olho negro da cigana piscava no escuro, era quase vidente de coisas inéditas: passado nunca; futuro ao Deus-dará, presente, que venha... E veio... na forma de Homem-peixe, entre lilases e urtigas...Um olhar que cruzou como a forte onda que derruba na praia a estaca da vida... O Homem-peixe encontrava outro ser sem que o Destino soubesse. Este ainda dormitava nas profundas cavernas do dia, (os destinos só se encontram à noite e, ali, o tempo imantara-se com a corrente que o Dia lançara sobre a Terra, enganando os homens, delirando a natureza). Era quase o destino de partir e deixar os Homens na escolha de suas próprias horas, suas próprias obras... A cigana não vinha com lenços nos cabelos nem véus sobre o rosto. Havia na cintura um lenço vermelho com miçangas e cheiro de água-de-cheiro que a abraçava sobre o vestido esvoaçante. Não havia um pai desconsolado a praguejar a sina da filha iludida pelo Boto, era somente uma mulher que dançava na areia vermelha e barrenta, à beira do rio. Sua mão aberta ao tempo revelava caminhos secos, caminhos distantes, de praias brancas e céu azul... Era quase o encantamento do amor na dança ao vento... Mas antes que o pio doloroso alcançasse a mata, denunciando a cilada, o Homem-Boto abraçou a seda pura, semeou sua semente e cantou suas ladainhas de mar, de peixe, de escuridão. A cigana olhou-o firme, gritou alto, confirmou o próprio Destino e dormiu nas escamas, sentindo a doce brisa que vinha sobre as águas, a fogueira esqueceu de suas brasas, mandou o incenso para as Trevas que despertou o Destino das Coisas comuns. Nova flecha atravessou o céu imenso....era a Fúria... a Vergonha... Mas era quase noite e o Peixe-Homem teve mais uma vez o pedaço de carimã que as índias escondiam em seu louvor... Sob o vento, a sombra leve da mulher-cigana ainda deslizava no compasso sensual da vida marcada para ser esquecida. | ||