PRECISA-SE. DE PACIÊNCIA
Doca Ramos Mello
 
 

_ Moça, eu vim pela vaga de lavador de vidro, já tenho um pouco de experiência, trabalhei lavando vidro de carros por aí, a senhora sabe, fazendo bico, a vida tá dura, a gente vai pegando o que aparece, mas aprendi muito e...

_ O senhor é afro-descendente?

_ Senhora....?

_ Afro-descendente. Negro.

_ Ué, não. Faz diferança? Porque eu sou assim branquelinho, mas não brinco em serviço, a senhora pode confiar em mim, dou conta da coisa e garanto que...

_ A gente aqui trabalha com cotas.

_ Costas...?

_ Não, cotas, cotas. Eu quero dizer que aqui na empresa, primeiro a gente atende às minorias excluídas, o senhor não sabe que agora tem isso de cotas? Negro, índio...

_ Moça, com costa, sem costa, eu preciso trabalhar e já disse p'ra senhora, sou trabalhador.

_ Olha, aqui a gente tem de dar emprego, primeiro, para certas pessoas, por exemplo, vamos que o senhor dissesse ser negro, mulatinho já serviria, meio pardo, moreninho digamos, então o senhor passaria na frente dos outros candidatos por causa disso, me entende? Como o senhor diz que não é negro...

_ Moça, não sou negro, mas preciso trabalhar.

_ ...Índio?

_ Cruz, credo, onde?!

_ Estou perguntando se o senhor é índio, porque índio também é minoria excluída e eu posso passar os índios na frente dos outros. O senhor não teria na família algum cacique distante, um bororó, um nambiqüara, um caiapó, alguma coisa assim?

_ ...Err... Ô moça, eu vi uma placa ali onde está escrito que aqui vocês precisam de lavador de vidro, então eu entrei porque estou desesperado por um trabalho com carteira assinada e tenho prática em lavar vidro, meus filhos tão tudo com fome em casa, a patroa faz uma faxina aqui, outra ali, mas não dá, e a senhora me vem com essa conversa, ara! Nunca nem vi um índio de perto nem de longe, eu, heim...

_ O senhor tem alguma necessidade especial?

_ Hiii, dona, uma carreira. É casa, médico, remédio, salário, comida, roupa, sapato, tudo.

_ Não, não, não é isso. Vamos lá, não tem ninguém oriental na sua família? Sim, porque há umas atrizes orientais por aí reclamando que não existem muitos japoneses ou chineses, por exemplo, nas novelas da televisão, portanto, japonês, chinês, coreano, esse pessoal é minoria excluída, se o senhor for aparentado com algum japonês...

_ Não, moça, não. P'ra falar a verdade, nem amigo japonês eu tenho, mas posso arrumar, se a senhora me der a vaga, corro lá na Liberdade, conheço um cara lá que de vez em quando me dá um pastel, vou lá e faço amizade na hora, sou muito dado, xá comigo...

_ Ah, por acaso o senhor é homossexual?

_ Como...?

_ Homossexual. Quero dizer, um homem que gosta de homem, o senhor entende...

_ BICHA, eu?!! O que é isso, moça, tá me estranhando? Eu lhe mostro a bicha, agora!

_ Schss, não diga "bicha", o senhor pode ser preso por discriminação.

_ Ah, tá. Então a senhora me pergunta se eu sou viado e eu é que vou preso, é isso? Vim aqui procurar emprego e a senhora me fala que eu preciso ser bicha p'ra lavar vidro, tem cabimento uma coisa dessa? Pois eu sou macho e sei lavar vidro, não me venha com essa gracinha, a senhora me respeite!

_ Não seja grosseiro, meu senhor, só estou cumprindo as cotas, esta empresa é politicamente correta.

_ Hiii, tem política no meio?! Então é isso. Ô desgraça...