A CURA
Araceli Sobreira Benevides
 
 

"Precisa-se daquela cura hoje"!

Joana recebera a notícia assim de supetão e para acalmar a alma dura, ríspida, feita de cerâmica, pegou uma vassoura velha e foi varrer o quintal, juntar as folhas das mangueiras, as flores dos jasmineiros que caiam branquinhas no chão batido.

"Ele era meu! Ele era meu!" Um quê de raiva saia em murmúrios, enquanto a poeira seca subia com a força de seu braço sobre a vassoura.

"Ele era meu e elas o tiraram de mim! Tive de entregá-lo, vê-lo se indo com aquela lá e todas as outras mais. Guardei tudo. Fiz outra vida. Tenho meu marido e meus filhos, mas não pude esquecer, meu Deus, que ele era meu!"

Um sonho inteiro de moça silenciara em um mês de julho. O ano era 89, mas agora parecia que um século os separava daquele fim de tarde, quando uma jovem senhora entrara na igreja, acompanhada de um rapaz agitado, sorriso nervoso, a lançar nas pessoas grandes e profundos olhares. Para algumas, o olhar era de desespero, aquela ali vira um pedido de socorro? E aquela outra vira uma piscadela? Será que esta aqui ouviu um "depois a gente se fala"? Joana escutara sim as palavras murmuradas entre os dentes pelo jovem que passara ali, ao lado de seu banco, na igreja:

"Eu te amo..."

Ele passou tão rapidamente, parecia estar correndo para o altar. Quando a noiva passou, Joana baixou a vista. Sentia na alma a dor, a angústia de um silêncio profundo a se agitar em suas entranhas.

Joana passou pela festa sem entender muito bem o que lhe diziam. Notava várias moças saindo da igreja com os olhos marejados, a maioria trazia um sorriso amarelado, não havia ar de casamento naquela festa.

Muitos anos se passaram, mas nunca perdera de vista o noivo que ela entregara à outra. Ela o via em seu trajeto diário. "Precisa-se dar um jeito nisso", repetia sempre a si mesma! Às vezes, sentavam-se juntos à sombra de uma grande mangueira, perto do bar do alemão. Ele tomava uma cerveja, a jovem um suco de laranja.

O rapaz cantava poesia e ela sonhava com ele de novo. Ambos se esqueciam do peso do casamento nessa hora. Por fim, levantavam-se e cada um seguia por caminhos diferentes.

Numa manhã bem quente, certa vez, Joana chegou ao bar, como sempre vinha e pegou parte de uma conversa:

"Mas ela morreu?"

"Não, quase. Sangrou por três dias, apagou e agora está internada".

"Dezesseis anos? Emílio é doido! Tanta mulher no mundo e ir se meter com uma criança? E a mulher dele já sabe?"

"Sei lá, todo mundo sabe..."

Joana passou para o balcão. Estava lívida. Os homens perceberam que ela havia escutado tudo e um lhe disse:

"Isto serve para você também: afaste-se dele, menina, todo mundo vê que você abre meio mundo por ele, mas agora ele casou, tá casado. Mesmo saindo com tudo isso que é mulher - e apontou em direção às mesas onde estavam pelo menos umas seis jovens - ele não vai parar. Agora mesmo, quase matou uma criança, que botou o filho dele no lixo! Não é isso o que você quer, é" ?

Sem nada responder, Joana sentou-se perto do balcão e ficou a pensar. Pensou e se calou. Desse dia em diante, a morena que enchia de presença o bar do alemão, as alamedas floridas do bairro se foi e nunca mais retornou.

Acabou por deixar os anos virem através dos cabelos brancos; a pele engelhou-se um tanto, deixara os cabelos crescer e os usava como as sertanejas: presos em coque. Vez por outra Joana não resistia e através de uma ou outra amiga, pedia notícias de Emilio. Precisava alimentar uma alma sedenta.

"Na mesma, agora ele está com a Cida, a galega. Dizem que já têm um filho".

"Ah, mas tem a Liloca, da D. Toinha. A coitada quase morre quando soube que ele era casado!"

"Triste sina das mulheres que cruzam com ele - não escapa uma! Até eu juro que já suspirei um dia - ah, não me olhem assim, ele é um pão! Mas nunca passou de uns suspiros - eu sei onde me meto! Nem precisa dizer mais nada" !

Joana construíra uma linda casa. Hoje, além dos filhos, tinha um jardim perfeito, tão lindo quanto o da casa do pai, com rosas, jasmins, espirradeiras de todas as cores, romã, hortelã, e toda a espécie de planta que cura. Em seu mundo havia criado o silêncio do coração como se houvesse cirurgiado a parte onde cabia Emílio e todo o seu passado. Ela dizia a si própria, porém que usara linha fraquinha, pois sabia que aqueles pontos podiam se romper a qualquer hora. Parecia que na sua vida havia uma placa dizendo "Precisa-se dessa dor, dessa lembrança, daquele homem"!

A linha fraquinha rompeu com a visita inesperada que lhe mudara os pensamentos dias antes! Joana varria o quintal, pensando na hora de ir tratar de Emílio com seus chás e mezinhas. Da necessidade etérea à urgência dos olhos fechados, das palavras mágicas, do silêncio da despedida com a sacolinha de tricô carregada de receitas, mezinhas e fórmulas que lembravam-lhe que agora haveria um outro momento, uma nova vida, sem que ninguém se atrevesse a desfazer as tramas que a vida tece.

Dona Alzira, mãe de Emílio, foi quem veio lhe falar.

"Ah, minha filha, tá doente sim. Só eu sei o que ele tem. Mas não é doença do corpo, como todos pensam! É doença da alma. Por isso eu vim. Você conhece a alma dele e pode fazê-lo bom de novo".

Os olhos da mãe do homem que agora estava velho, doente, abandonado pelos amigos e se acabando na danada da cachaça, encheram-se de lágrimas. A Cida, a desgraçada, segundo as palavras de D. Alzira, havia ido embora com os filhos. Deixara-o para seguir o mundo. Parecia querer mais, outras coisas, outras cidades... Os filhos da mulher com quem ele se casara estavam grandes, já não acreditavam mais no pai e ele caíra de cama. A mulher teve até do lado dele, mas havia mágoa e lágrimas demais em seu coração que não teve companhia que desse jeito de o tirar da cama.

Quem era de festa, mesa de bar, roupa de linho e tudo mais, vivia agora de pijamas, com o olhar parado para o teto do quarto, sem saber se era dia, se era noite.

Os olhos da mãe de Emílio levantaram-se para Joana. Havia uma súplica profunda saindo daquela mulher desesperada, o ar de "precisa-se" que acendia no ar o desejo de juntar ervas, sentir o aroma das plantas queimando no nariz, o calor das mãos se esquentando para o gesto repetido entre os dentes já amarelados ao som da reza aprendida nos tempos de menina na casa da tia-avó.

Dois dias passaram entre a visita de D. Alzira e a decisão de ir curá-lo. Os anos haviam dado à Joana um dom de mascarar a dor em si mesma e nos outros. Sua fama corria léguas. Até em outros povoados sabia-se que só com o olhar e um raminho de arruda, Joana espantava qualquer mal-olhado, quebrante, ventre virado, espinhela caída, então, era só colocar as mãos, rezando umas palavras ditas entre os dentes e um galho de hortelã da folha grande no canto da boca, que a criatura ficava boa. Joana também preparava banhos escaldantes, fervia um balde, enchia de folhas secas de lavanda, malva, eucalipto, ficava atrás de um lençol enquanto o precisado banhava-se. Daí a dias, "tava curado"!

Decidira varrer o quintal em pleno sol para queimar a mente, queria uma opinião da natureza e isso veio através do vento que levantou as folhas, fazendo-as voar em direção ao portão. Ao seguir, com os olhos, o caminhos das folhas, a mulher viu seus filhos e seu homem chegando, todos fortes, felizes e animados. Tudo perfeito. Seu coração ardia de felicidade quando olhou para o imenso quintal. Parecia que tudo nunca estivera tão limpo e organizado.

"Está na hora de molhar os gerânios, já está no tempo dos gerânios. Essas mudas já podem ir para um jarro maior".

Joana enxugou o suor do rosto, olhou calmamente para os filhos que iriam de bicicleta para a escola, bateu os pés no tapete à porta da cozinha e gritou:

"Nega, prepare as folhas secas que eu tenho uma cura para fazer hoje! Não esqueça de colocar os jarros com as rosas murchas no lixo. Deixe a sala iluminada que eu volto depois do almoço. Não se precisa de muita coisa pra gente colocar a vida no lugar"!