A BENÇÃO MEU PADRINHO
Zeca São Bernardo
 
 

Hora da bóia...que delicia! Matar a fome servir-se da comida de norte a sul do país bem ali no acostamento e servir-se, também, das histórias e ´causos´contados pelos companheiros e companheiras! Sim, senhor, há companheiras e não é de agora. Faz já algum tempo que vê-se mulher na boléia tocando a vida estrada afora sem homem do lado.

Á vida é assim, as coisas mudam e pensando nisso Boa Morte lembrou-se de um dia já muito, muito ido. Calma lá que esta história logo contaremos, contudo, esclarecemos quem é este tal de Boa Morte, de onde veio e até onde pensou em chegar. Deixamos desde já claro que seu fim ou se um teve não podemos precisar como se deu. Mas nosso apreço pela figura deste gajo nos impele á crer que, ainda, roda por ai.

Joaquim Boa Morte nasceu de mãe e de pai, costuma nos dizer como se outra maneira houvesse alguém para nascer, como qualquer um. Seu pai contrário á expectativa de toda a família já instalada em terras tupiniquins não montou nem quitanda, nem padaria. Este negócio de secos e molhados não era para ele e um dia contaremos essa história. No momento é o filho que nos leva a pena e sua vida bem daria ao menos um livro que pagasse o esforço de pega-lá. Vindo das distantes terras de Portugal investiu suas poucas economias num velho caminhão e foi tocar a vida conhecendo o Brasil, idas e vindas sucedeu certa noite de recostar-se numa palmeira para ver o luar e servido- diga-se de passagem, muito bem servido- de perna de moça fez um filho a quem deu o nome do avô: Joaquim.

Bem tentou ali lançar os alicerce de sua alma, botar casa, etc. sabe bem que sofre desse mal de estrada no sangue que não tem cura. Morre-se, até, sonhado com o próximo frete e há quem diga que doutro lado nada mais há que um acostamento. Deixada à bela morena para traz foi-se para a boléia com Joaquim, já com dez anos, ali passaria a adolescência, a vida adulta. Teria da geografia sua melhor aula, bastava baixar o vidro do Aldo do passageiro para dar com as árvores da Amazônia, com o Pelourinho, com o Monumento da Independência e com tantas e tantas outras coisas.

Crescido tornou-se mulato de carapinha e traços fortes mesclados com o queixo fino do pai. Sabe-se lá, a natureza vira-se bem com o que tem...capoeira valente, esbanjador de boa prosa, contador de causos, doutor no truco e apreciado mestre namorador. Herdou do pai o caminhão e o gosto pelo frete para o fim do mundo que muitas vezes não é o que paga melhor, sonhou abandonar a estrada e botar na praça firma de transportes com frota própria e tudo. Um misto de cooperativa com associação onde com o tempo poderia o motorista agregado comprar o caminhão. Dessas coisas que claramente nunca dão certo deste lado do mar.

Na hora da bóia dividia igualmente o pão e atenção com os amigos. Ninguém era-lhe mais caro, ninguém era-lhe mais querido e na frente dele sentiam-se realmente todos importantes, logo, todos iguais. Quando esta se fazia á noite, quer seja menina moça prometendo frete de amor ou desbeiçamento em arrasta pé, criança mal criada na chuva insistente ou senhora distinta em datas de procissão, Boa Morte divertia á todos com os acordes de seu cavaco. Igualmente bem manejava o banjo ou bandolim, aprendera com o pai estas coisas e outras como o valor da palavra dada, mas que pode um homem fazer se seu coração pende para o cavaquinho e o pagode. Enquanto algum outro companheiro arranhava um samba quer enredo, quer moderninho. Até tentou aprender a tocar rabeca cujo som era lembrança do avô na memória do pai e não sua, mas de tanto ouvir falar nele apaixonou-se platonicamente. O problema era que seu suposto professor calhou de ser um cigano que vivia da venda de tachos de bronze e não tinha parada certa. Afinal, se a tivesse não era cigano e assim dois ou três encontros depois deu seu curso por encerrado.

Hora da bóia, momento sagrado dentro de cãs e na estrada, mas essa noite perdeu Boa Morte o horário preso num congestionamento e no lugar marcado para o encontro com outros caminhoneiros chegou atrasado. Que fazer? Seguir, ora pois não!

Pago preço do pedágio, faróis de milhas ligados, segue pela rodovia da morte sorrindo e atento. Pensa que no final de algumas contas bem ou mal feitas talvez esta seja um parente. Ao menos no sobrenome. Nosso Senhor do Bonfim, São Cristóvão, São Judas, Nossa Senhora do Desterro por falta ou carência de santos não ficara desvalido. Acompanham-no todos na boléia, agüentam-se como pode presos com fita adesiva por dentro do pára-brisa. São os pulares santinhos, folhetos com uma figura do santo na frente e no verso sua poderosa oração.

Sabe-se lá o que quer a sorte de um homem? Ou se o tal destino anda por ai á toa sem ter muito o que fazer? Não sei, ninguém sabe e a única coisa que Joaquim Boa Morte soube naquele momento era que tinha que tomar uma decisão; ou bem ignorava o carro parado a sua frente ou bem seguia.

Dúvidas. Que a de fazer um homem? Correr o risco de um assalto, levar uma bala atrás da nunca, socorrer um necessitado? Boa Morte Escolheu a última, deixou o caminhão no acostamento e foi ver qual era a emergência. O que afinal de contas faria alguém deixar o carro bem ali. Menos de dez passos ouviu os berros e pensou que talvez a vítima de uma desgraça estivesse ali presa. Um sobrevivente de um assalto mal sucedido. Correu e...nunca mais esqueceu o que ali lhe esperava. A mulher com a bolsa que estourou, largada nos bancos da frente, urrando de dor e chamando pelos santos que conheci e até pelos que só alguma coisa ouvira falar.

Não havia muito o que se fazer, Boa Morte já assistira um ou dois partos e sabia que naquele estágio só cabia-lhe aparar a criança e rezar para todos os santos pendurados na boléia, para todos os santos que a moça evocava e invocava e para todos os outros santos que por um acaso estivessem ouvindo. Com muito custo acendeu o pisca-pisca do carro, retirou o triangulo as pressas e o depositou a uns dez metros da traseira do veiculo. Retornou, rezou, consolou a mulher, exigiu-lhe forças de fêmea em horas de parir e foi agraciado com o pequeno em seus braços.

Coisa bonita de se ver, diria um dia, coisa que até faz um capoeira chorar. Ali mesmo a promessa fora feita pela mãe: levaria o nome todo do padrinho no batismo já que o pai nada valia. Boa Morte pensou em declinar do convite já no hospital, mas, ao aparar o pequeno lembrou-se de seus filhos. Sempre lembrava deles quando comprava bananas, brincava, mais de dúzia. Nenhum com seu nome, temiam as mães que Boa Morte fosse um nome de mal presságio. Coisa dessa nossa gente ignorante que ainda corre de banda quando cruza um gato preto a sua frente.

Assim, lavrou-se o assento de Joaquim Boa Morte dos Santos no cartório daquela cidade e sempre que o padrinho ali passava tomava-lhe a benção, aprendia a tocar cavaco e quando tornou-se um homem sorriu-lhe a sorte num bilhete de loteria e montou uma certa transportadora.

Se tudo isso, se essa história toda aconteceu assim eu já não sei...sei só que nasci e passei minha infância em São Bernardo Do Campo, num bairro operário as margens da Rodovia Anchieta, em casa modesta de avô pedreiro, avó costureira, mãe solteira, tio beberrão e outras coisas assim. Bem perto, portanto, do ponto no acostamento onde reuniam-se muitas e muitas vezes caminhoneiros de todo o país com suas possantes máquinas carregando batatas, minérios, couro, verduras e sabe-se lá mais o que. Local ao qual corríamos todos, sonhadores que éramos para ver se não tratavam-se de cargas tão preciosas como ouro ou doces. Só sei que na última fogueira que fizemos há muitos, muitos, anos atrás para Santo Antônio passou por lá e dançou a quadrilha um senhor já entrado em anos. Que, dizem, na juventude tinha fama de valente, brigão, contador de causos e que a cada quando fazia uma visita á um certo seu afilhado- meu amigo de brinquedos que chamava-se Joaquim que não mais veria na escola- que fumava charuto e gabava-se de ter visto as mulatas enrolarem os mesmos nas coxas. Daí o seu perfume, tomava uns bons goles de cachaça no boteco do português que ficava na mesma calçada de nossa casa e pedia-lhe para pendurar a conta que um dia pagava. Nunca pagou, chamava-o de meu tio Joaquim e distribuía doces para todos nós e fitas do Senhor do Bonfim para quem quisesse. Tratava-nos todos de meu afilhado e até arriscava a nos ensinar capoeira. Sob o risco de quedar-se ao chão e não levantar mais.

O que realmente sei? Bom, talvez Boa Morte seja só um personagem fictício, talvez suas façanhas não tenho sido tantas assim. Mas, com certeza, há um pouquinho dele no coração e na alma de nossos caminhoneiros.Portanto, a benção meu padrinho....