O MILAGRE DO CAMINHONEIRO
Tony Pent
 
 

Numa melancólica noite de outono, seguia em meu caminhão, a caminho de São Paulo, eu e os meus dois filhos encostados uns nos outros e eles raramente levantavam os olhos para olhar a estrada. Parecíamos esquecer de tudo, que nós três havíamos deixado para trás. Seus olhos se assemelhavam a dois faróis acesos na minha direção e com os quais me atravessavam a alma. Os dois meninos são tão amigos um do outro e isso me causa inveja. O mais velho tem doze anos e encontra dificuldades na escola, onde os colegas o vencem em quase todas as matérias. Já o menor aprende com mais facilidade e com apenas a diferença de um ano a menos que o irmão já está na mesma classe. Isso tudo também me faz pensar que: pode ser de minha culpa essa indiferença pelo conhecimento. Sou um matuto, que só aprendeu as leis da estrada e o pouco que sabe de escola, mal dá para ler as placas que saltam milhões de vezes diante dos meus olhos. Hoje me sinto preso de mordaz arrependimento. Queria parar o caminhão e dar meia volta e ir correndo para a minha casa e dizer a minha amada que tudo o que lhes contara não era verdade. Eu fui horrivelmente estúpido em fazer confissões. Que haveria de ganhar com isso, agindo assim? Minha confissão não teria outro resultado, senão o de acarretar a minha própria desgraça. Nas ultimas semanas eu não estava tão aviado daquela união, mas agora que me via forçado a renunciar todo o meu amor, considerava-o enfim, apenas pelo seu justo valor do prazer. Não era só aquela convivência de quinze anos que eu deplorava perder, mas mil pequenas coisas de menor importância.

Naquele exato momento eu devia estar partindo para os braços de minha amada e todos os que me houvesse visto teriam invejado. No entanto, as curvas da estrada me afundavam em uma solidão, que eu não sei de onde vem.Tudo desaparece na noite e eu não tenho a mínima intenção de avistar-se com a sorte; sinto-me apenas satisfeito por estar só, de modo que não precisava me conter. Ao longo do caminho, experimentei uma cólera irracional contra todos e contra tudo, dei violentos pontapés no acelerador, agarrei a alavanca das marchas com desprezo e bati com raiva no painel do caminhão na troca das luzes. No meio do caminho e como por um milagre tomei um atalho que me pareceu mais tranqüilo. Ao contrário, comecei a sentir dificuldade em transitar por ele. Perdi o trajeto e fora obrigado a atravessar uma faixa de terra, que ao meu menor descuido poderia me dar mal. Disso eu tinha sensação bem clara, mas não obstante continuei na marcha, como se sentisse prazer em expor-me ao perigo.

- Se morrer aqui, ninguém vai me encontrar. - disse para mim mesmo.

Mas graças a Deus nada me aconteceu, nem aos meus queridos filhos. Comecei a me sentir um egoísta e um homem da pior espécie. Recuado a distância e olhando os vultos das arvores, avistei pelas sombras, naquela floresta negra, uma pequena capela de beira de estrada. Havia naquele espetáculo alguma coisa de santo, em face do qual, as minhas mágoas se tornaram tão pequenas. Lembrei então que minha mãe, em suas historias, contava que num lugar como esse Jesus havia sido tentado pelo diabo a adorá-lo. "Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares". Na verdade, os "meus diabos" me conduzira até aquele lugar, donde me mostraria todo o esplendor da minha vida de solteiro. "Basta que você esqueça a sua mulher que eu te darei tudo isso" - vieram essas palavras aos meus ouvidos. Nesse instante, não tinha mais duvidas de que eu estava passando por idêntica tentação. Subitamente eu parei o caminhão no acostamento e me dirigi para a pequena capelinha de beira da estrada. Numa pequena cruz fincada no chão havia o nome de um homem e logo a baixo uma frase que dizia: "Nem mesmo com todo o amor que tenho por você eu o terei de volta" Aquela frase me abriu os olhos e de repente uma grande calma se apoderou de mim e uma sensação de felicidade bem diferente invadiu o meu ser.

Recordei os meus dias passados e isso foi me levando para fora das trevas. Aquele instante fora de um verdadeiro milagre, pois eu acabara de me reencontrar. Permaneci mais algum tempo em frente à capelinha, mas logo pensei comigo, que era a hora de voltar o mais depressa possível para casa e dizer a minha amada que acabara de encontrar, enfim, a paz que tanto precisava. Subi no estribo do caminhão, abri a porta da boléia e me sentei diante do volante. Dei dois suspiros profundos e acelerei a toda a potência do motor. Meu "bruto" me conhecia bem mais do que eu. Levantando uma nuvem de fumaça ele cortou a estrada. No primeiro retorno pareceu que as mãos dos anjos me viraram para a esquerda e eu estava voltando. Olhei pelo retrovisor, à noite e os meus desvairados sonhos se perderam nas faixas brancas do acostamento. Meu coração que estivera opresso por pesada angustia, começava a bater em ritmo cadenciado, ao mesmo tempo em que experimentava a felicidade a assoberbar dolorosamente as minhas veias.

- É ela que eu amo! - gritei acordando as crianças. - E pensar que esperei até agora para saber disso...

Minha revelação agiu como a força de um raio e desencadeou em mim e nas crianças um riso sem fim. Eu fiquei deslumbrado com o amor que despertara em meu coração. Quando cheguei à porta de minha casa, abria-a com todo o cuidado e ao atravessar o umbral da porta, a mulher que eu amo se levantou e eu lhe disse:

- Sou eu! -

Ela fechou os olhos e ficou imóvel para guardar aquela ilusão, como alguém que sonha por uma vinda, mesmo que fosse apenas uma aparição. "Nossa senhora, me de a mão, cuida do meu coração e da minha vida ai! Do meu destino! Do meu caminho... Cuida de mim...". A canção no rádio de pilha embalou os nossos beijos verdadeiros.