ACONTECIDO NA BEIRA DA ESTRADA
Raymundo Silveira
 
 

No tempo que eu viaja pra Teresina, sempre parava no Restaurante do Albeci. Fosse para almoçar, fosse para jantar, fosse para mijar ou.... Bem, neste dia o sol tava de lascar. Mal entrei, entrou outro sujeito. Terno escuro, suando em bicas, um baita calor. Ali se bebia cerveja gelada, comiam-se caranguejos e se conversava fiado. O cara do terno escuro pediu um copo d'água, por favor, para aliviar asma danada, carregada desde menino. Segundo ele mesmo. Vazante de pessoas. Sabe-se lá se por presságio ou preguiça. Calmaria. Apenas estudantes desgarrados. Adiar volta pra casa, alguns. Casal, só um homem magro, chapéu de couro, relógio ordinário e a sertaneja. Jeitosinha. Vestido ramado, olhos caboclos, envergonhados e, no contraste, boca de beijar.

Dono de mulher com formosura devia preferir bebida quente. Pra ir menos ao banheiro. Numa das ausências, foi entrar o forasteiro. Cabra forte. Bigode ralo, chicote na mão. E um pau de fogo, bem à mostra, na cintura. Jagunço. Pegado com o diabo, mas temente a Deus, pelo lado da mãe, devota de novenas e romarias. A vida toda, amedrontar com pecado. Usar medalhinha no pescoço e tudo mais. Sempre se benzer, ao apagar algum. E até deixar o infeliz rezar o fim.

Pois no rodeio dos olhos pelo ambiente, deparou com a sentada: só. Inventou de se enxerir pro lado dela. Arreganhou sorriso. Adoçou a voz: "Ai meu Deus, minha mãe precisa duma nora". "Valei-me são Bento das mariquitas". "Que mulher cheirosa, minha nossa..."

No voltar, o aliviado, abotoado, percebeu... Nunca que andasse em confusão, mas frouxo não era. E, pimenta malagueta, na raiva explodida, foi gritar pra fora da boca a dentadura postiça. Essa sim frouxa, escondida até de si. Nem a noiva sabia. Antes ser corno a ter o segredo revelado.

Tudo pequeno, diante do acidente. Graças a Deus, desastre rápido, que nem bala. Decolagem de foguete. Ninguém perceber. Apenas o mistério: onde a aterrisagem da ponte voadora. Até encontrar a dita, era agüentar firme e disfarçar. O pior, é que todos esperavam a sua reação ao atrevimento do matador. Encruzilhada do inferno. Vergonha desdentada e humilhação do assédio à noiva. Então, sentar, marcar o terreno e enfrentar o valentão: Olhar furioso. Destemido. Satânico. Mas, boca de esconder vazio, era só:

"Hum, hum!". Susto da noiva. E ele "Hum hum".

"Diz o que tu quer dizer, fio duma égua" Repetia: "Hum, hum".

"Este corno é mudo". "Hum, hum".

"Fala filho da mãe, não te põe fazer motim com esse hum, hum. Quer me gozar, é?" "Hum, hum".

"Abre a boca, seu viado, safado. Diz ao menos que eu sou feio". "Hum, hum".

Ora, o beato, terno preto, água, por favor, diante do "hum hum hum". Apiedou-se: Mudo! Cabia bem um milagre ali! Livro aberto na mão, deixar a providência divina se apresentar, e atacar a oratória abençoada. Estufar o peito, o pouco que conseguia, pela asma, coitado, e, suando fé, começar a pregação. Compenetradíssimo:

"Irmãos é che...gada a hora de se arr...ependerem porque o apo...calipse se apro...xima".

"Diz ao menos que sou feio, seu baitola" "Hum, hum"

"Então, tá me achando bonito, hem boneca?" "Hum, Hum, Hum, hum".

"Arre égua!" "Hum, hum".

"hum, hum é meus ovos". "Hum, hum".

Na obstinação de se fazer ouvir, o suor cada vez mais pingar. Aumentar o chiado e as respirações seguidinhas, no falatório. Melhor subir num banquinho, para que todos pudessem ouvir a sagrada palavra:

"Lucas, versí... culo quin... to... Arre... pendei-vos... Ale... luia, Senhor... Sal... ve Ale... luia . Salve..."

Aleluia, o valentão não agüentava ouvir sem responder.

"Aleluia", "fio de uma rapariga". Misturar reza com desaforo. "Hum, hum".

"Sapo sem brejo! Salve. Aleluia" "Hum, hum".

"Lazarento!" "Aleluia se... nhor" ''Salve!"

O beato na pregação e na sufocação. O valente no Aleluia salve e na xingação. O noivo humilhado no hum, hum e aproveitar a distração do cabra e de todos. Tentar pescar, com os pés, a postiça, caída por debaixo da mesa.

A heroína da opereta cabocla, convencida de covardia. Misturar ódio e desdém. Mas o descabido "Hum, hum" a se repetir tanto; as provocações, de tal forma irreverentes; a pregação suarenta e sufocada; os Aleluias do beato e do jagunço: Um frouxo de riso a sacudiu, inadiável. Na aflição de evitar a ira do valente, espremer risada na boca de cima. A de baixo, traidora, render-se e libertar generoso frouxo de mijo. Sem censura, gostoso, esparramado. Era ver jirita, mijando sem parar, num saco de risadas. Frouxidão de encharcar vestido, escorrer pelas pernas, fazer poça no chão. Relaxar, chorar convulsivamente... Não de tristeza. Choro de risada, de prazer.

E o beato, suarento, a agregar mais um pedido: o exorcismo da choradeira . O matador, cada vez mais "Aleluias", distraído da valentia. Louco pra aproveitar a chance e ser libertado, também, dos pecados.

"Aproxi... ma-te peca... dor" O cabra ajoelhado, com arma na cintura e tudo.

"Afas... ta-te espírito im... undo, deixa esse corpo arr.......ependido. Salve Ale....luia salve".

Todo mundo espiar. Ver o suador, a falta de ar, a fé, as pernas molhadas, e, acima de tudo, o cabra, danado, de joelhos...

"Hum, hum", perder os dentes, perder a honra, mas não a esperteza. Escorregar pro lado, um passo e outro... Até escapar, de fininho, sem ninguém perceber.

Embaixo da cadeira encharcada, no meio da poça, ainda morna, a tão procurada dentadura, arreganhada, com jeito de nunca mais parar de rir.