DELICADO
AMOR | ||
Janice
Diniz | ||
Dobra a roupa dura sem amaciante que tirou do varal, cata com os dedos e leva à boca os grampos de madeira, junta o balde vazio do chão e carrega todos para dentro de casa. Inclusive corpo esquálido, pele ressecada, juntas duras, olhos glaucomados de mágoa. Encontra um fio de sol no rosto e o afasta retirando-se para debaixo da sombra de um amarelado limoeiro. Ensaia um sorriso ao descer o olhar para uma antiga bicicleta Monark, aro 14, decorado com pedaços de canudinhos plásticos coloridos. O guidão está torcido de modo estranho. O dono da bicicleta a abandonou há cinco anos ao entrar na puberdade. As imagens de um garoto moreno pedalando velozmente pelas ruas do bairro, buzinando contra pedestres desatentos na calçada e raspando de fininho (como ele dizia, "raspei de fininho, mãe") os troncos das árvores e à beirada dos valões. À esquerda, próximo ao canteiro de miúdas margaridas, a mão de couro de um goleiro, a costura da luva desalinhavada, o polegar arreganhado num rasgo como se apontasse a falta do dedo. O menino não quer mais jogar futebol. Nem andar de bicicleta. Traz as lembranças pra junto do peito. Recolhe um suspiro escondido entre as costelas; dói, o ato de suspirar dói. Assegura-se mais uma vez de que não esqueceu roupa no varal. O fio de nylon está esticado e vazio. Agora, não mais. Pousa nele um pardal. E a mulher de quarenta anos aparentando dez a mais, estica os olhos toldados por pálpebras insones até a janela da minúscula garagem, atravessa as grades mas se detém no vidro. Embaçado, sempre. Uma cortina de hálito é dispersa pela mão cujo dedo anelar jaz a sombra de uma antiga aliança. O recinto possui uma luz tuberculosa, as quinquilharias de outros tempos se amontoam indignadas, um colchão de solteiro se recusa a combinar espaço com a mesinha de madeira sustentando um prato com comida e um copo com água. E a mulher não vê mais nada. Raspei de fininho, mãe... Deposita as roupas sobre uma mesa de fórmica riscada com esferográfica azul com o símbolo do timão. Nas tardes de domingo o filho vestia o uniforme do Grêmio, cantava o hino do clube e seguia o pai em direção ao estádio. Voltava eufórico ou tristonho, dependia o resultado. Mas voltava. Abre a porta da garagem com cuidado, entra procurando não fazer barulho, a luz de fora ilumina parcialmente o recinto. É como uma caverna. Tropeça num arranjo de correntes, elos grossos que se unem. Argolas de prisão como as vidas que se entrelaçam e se vigiam cegas em adoração. Só lhe resta tatear as paredes. É possível ouvir mais de uma respiração. Alguém se recolhe a um canto morno e guarnecido de cobertas. Um bichinho magro e abatido. Por cifrados instantes a suspensão do movimento porque duas criaturas se reconhecem na escuridão. A mulher sofre a primeira contração uterina; o outro: respira pela boca. Então ela sai e tranca novamente a porta. Acerca-se dos brinquedos do filho, recolhe-os um a um, enfia-se num círculo de Legos, chupetas gastas, mamadeiras velhas, bonecos, carrinhos, dominós, gibis, carimbos, bolinhas de gude, raquetes, patins, revistas masculinas, cds, latinhas de cervejas vazias, canetas esferográficas sem carga, pedras de crack. Amar é um crime hediondo, uma espécie de homicídio doloso. As partes envolvidas, expostas aos tiros, camuflam-se em trincheiras de voile. Para a mulher rodeada de infância e adolescência de outrem, a crueldade do acontecimento está incrustada como um mioma no útero. Mesmo que erga o olhar para a cela à frente, mesmo que odeie todas as más influências que lhe roubaram o filho, mesmo que as tentativas de resgatá-lo do vício, das bocas de fumo, dos inferninhos nos quais ele vendia objetos do próprio lar se esgotem, mesmo que os ombros já se cansem de carregar um corpo drogado de arrasto de uma margem à outra da cidade, mesmo que agora escute passos no quintal após o desligar de um motor de automóvel, o bater de uma porta e uma seqüência de palmas e ouça o seu nome e ouça o nome do filho preso acorrentado ao pé de uma mesinha de madeira e verta lágrimas quentes dos olhos opacos e a dor se multiplique em contrações violentas e a maldita vida se vingue em quem só pede amor e a porta da garagem se abra a mãos estranhas de um conselheiro tutelar que a informa sobre a prisão, mesmo assim é a melhor saída. Algemada, encontra a viatura à frente da sua casa. Os vizinhos apontam e comentam (o monstro mantém o menino de 15 anos em cativeiro doméstico). A paisagem ao redor é dissimulada, todos usam máscaras sociais mal-acabadas. Então ele surge carregado por dois homens, amparam-no pelos ombros, falam-lhe coisas agradáveis e de bom augúrio. No meio do caminho, entre o meio-fio e o portão de casa, mãe e filho sepultam o olhar da despedida. Doce e profundo dizer sem verbalizar a morte do encontro. Ele entra na ambulância. E chora. Ela entra na viatura. E chora. Nunca mais. | ||