RETRATO
DE POLARÓIDE | ||
Isaias
Edson Sidney | ||
... houve um momento, sim, desejei o eterno; houve um momento, sim, aspirei ao fim do universo e ao contato com as estrelas; houve, sim, um momento, um breve momento de sonho e tenacidade, envoltos ali, naqueles lençóis sujos de outros embates, num motel fuleiro de beira de estrada; quis o seu corpo e quis também o tempo de seu corpo: sua história e as marcas roxas de tantas mãos, tantos beijos, tantas imolações em suspiros de sacrifícios e dores; queria também o futuro de impossíveis vidas e o anseio final de seu gozo antes, tão raro em meus braços enfim tornados raízes a trazê-la de volta ao meu peito; mas não eram retrovisores os toscos espelhos quebrados da porta do armário: a estrada limitava-se às dobras do cobertor manchado que mal nos cobria a ânsia de retomadas; não eram sombras alongadas de montanhas o que projetavam as duas lâmpadas coloridas do abajur: apenas os suaves contornos de seus seios outonais; você mentia o tempo e o tempo, ali, podia ser tocado com os dedos e medido por suspiros; também eu lhe menti o tempo das marcas de meu rosto; nada importava, a não ser o prenúncio de mais um enlevo; o minuto do encontro, no posto vazio de beira de estrada, tinha, ali, o frio no baixo ventre de desabalada descida em ponto morto, o motor em lenta marcha de contenção antes da conquista de montanhas e desfiladeiros; na noite fria de quase setembro, não havia luas nem luares, apenas o estranho eclipse de velhos anseios e você, apenas a mulher a desvanecer-se em líquenes e algas, a dobrar-se e desdobrar-se sobre a massa falida de minha insanidade: eu sabia que a primavera não veria desabrochar novos encantos em meus sítios crestados de fogo e mágoa; o meu tempo e o seu tempo eram, ali, naquele quarto fétido e feio, o encontro de fogos-fátuos e urgia eternizá-lo, ao momento e ao encontro, para que houvesse ainda um dia fogo em meus olhos ao contemplá-los num álbum sujo no fundo do baú de minha memória e, então, a velha polaróide ampliou o encanto em mil possibilidades de sonhos a haver, de mistérios a contemplar, e foi assim que você, minha doce puta de beira de estrada, preencheu de outonos minha noite de invernada, e agora, que todos os caminhos já foram percorridos, que todas as estradas já foram palmilhadas, aqui, neste meu leito também sujo e roto, não de embates e gozos, mas de vômitos e secreções, quero uma vez mais lembrar aquela noite em que desejei tanto o eterno e aspirei tanto ao brilho das estrelas, aquele momento que era sonho e hoje apenas tenacidade, a teimosa tenacidade dos que se recusam a partir e estendo meus dedos finos e tortos para a caixa de papelão, baú encantado de sonho e miséria, para, enfim, relembrar você, desvanecido vaga-lume cuja imagem polui desde sempre meus momentos finais e reencontrá-la seria sugar de novo a seiva de minhas raízes e queria tanto revê-la entre as manchas e sombras de um papel de polaróide que se desfaz ao meu toque e sepulta, enfim, no meu último pensamento a esperança de poder dizer-lhe que... | ||