BORBOLETAS
COMUNS | ||
Eduardo
Prearo | ||
São Paulo, Capital, 17h15 A luz fosforecente da cozinha bruxuleava, Michel preparava um café, a televisão sobre a geladeira estava ligada. Ele não havia ido mourejar porque se sentira mal pela manhã. Na verdade, sentia-se mísero porque não podia comprar o sapato da moda (aqueles com o bico mais fino), um terno de três mil reais, uma jaqueta de quinhentos reais, um MP4, um aspirador de pó; não podia pagar uma academia e até mesmo sanar as contas mais importantes. Havia resolvido decorar letras de músicas, o que para as pessoas em geral parecia simples. A cafeteira ficara mais lerda desde a última queda, mas não quebrara por dentro nem muito externamente. De lá de fora, a luz do dia se alquebrava tristemente; a lua iria nascer transversalmente com o prédio da frente, um prédio ultra-moderno e crioulo. Michel encheu a xícara até a borda meio machucada, gotejou adoçante barato e foi até a janela ver o que sempre via ou queria ver: borboletas comuns. Brasília, 23h36 Através de um telescópio gigante, Marco Polo, um astrônomo amador, constatou a presença de um grande meteorito vindo em direção ao Brasil. De início riu um pouco, mas depois ficou assustado. Claro que cientistas em diversas partes do globo já deviam saber do fato, porém a mídia ainda não divulgara nada. Se pudesse contatar o maior cientista do globo; se por acaso fosse Hitler mandaria ir buscar tal figura, assim como o Fürer fez com Lili Marlene. Mas achava que estava entre o bem o mal, entre Hitler e Chaplin. São Paulo, Capital, 06h30 Michel acordou com uma música eletrônica, e pensou em dormir mais um pouco; porém, um cliente o estaria aguardando por volta das oito; se é que algum outro vendedor esperto não chegasse antes. Levantou-se e foi tomar banho. Estava todo grudento devido ao calor de trinta e dois graus celsius. O desodorante de almíscar tinha um cheiro agradável, porém componente animal, e ser vegan enfraquecia Michel. Saiu do chuveiro e ligou o televisor. A notícias não lhe eram estranhas: terremoto na China, restrições num crescendo, greve de caminhoneiros, pedágio....Greve de caminhoneiros? Estranho, sempre quisera ser um caminhoneiro; achava-os livres e felizes. Achava-os bem-sucedidos. Mas por que fariam greve? Constatou logo em seguida que era por causa da falta de segurança nas estradas. Encheu a xícara até a borda, o café estava frio, e sem adoçá-lo foi até a janela nú e cheio de sonhos. Sim, era um sonhador. Ainda sonhava em ser um caminhoneiro, mesmo diante do caos que estavam as estradas, as ruas, as rodovias, tudo. Todo mundo comprava carro. Mas ele, com aquela culpa toda relacionada a dinheiro, talvez advinda de pessoas que não o achavam nada merecedor de ter um automóvel, não. Acendeu um cigarro e pensou nas campanhas anti-tabagistas universo afora. Saiu em vinte minutos. Não cumprimentou ninguém. Na rua alguém murmurou algo como bichinha louca. Não ligou, ouviria coisas assim até o final. São Paulo, Capital, 08h30 O cliente não aparecera; Michel ficou irritado. Esperou mais um pouco. Seria o lugar marcado aquele mesmo? Sentiu-se péssimo e incompetente; pra dizer a verdade um vadio. Tomou um ônibus qualquer e de repente se achou no Parque do Ibirapuera. As pessoas tinham agora a mania de chamá-lo de senhor. Realmente ele não tinha muitos fãs. Havia um homem sentado num banco próximo que chorava. O homem parecia afeminado. Michel teve vontade de chegar até ele, num gesto de solidariedade, mas se conteve. No entanto, após alguns minutos, impulsivamente dirigiu-se até o elemento, sentando-se ao lado dele. --- Dia quente. --- O senhor tem um cigarro? --- Sim, olha, pegue um; aliás, pegue o maço todo. Estou parando. --- Obrigado, mas não sou tabaquista; só quero um mesmo. O senhor deve ter um nome bem esquisito. É estrangeiro? --- Por favor, chame-me de você. --- Sabe senhor, não estou aqui neste parque vadiando. O senhor sabe que as coisas estão meio difíceis para pessoas doentes como eu. Sou bipolar. O senhor deve saber o que é um bipolar. Vim aqui para ter um maior contato com a natureza. Acho que o senhor está aqui pelas mesmas razões. --- Mas me parece que as coisas estão fáceis para muita gente. Você me parece ter um corpo maravilhoso. Qual o seu signo? --- Eu respeito. Meu signo é o signo de Jesus. Desde que comecei a ver as outras vidas das pessoas só de olhá-las, segui o caminho do protestantismo; mas agora estou meio afastado. --- Ah, sei. Eu também estou sempre afastado de qualquer coisa por mais que esteja presente. Os caminhoneiros estão em greve; parece que é por uma questão de segurança. As estradas brasileiras estão cheias de saltimbancos. Quer mais um cigarro? --- Já fui caminhoneiro. Meu nome é Dário. Estou à procura de um amigo. Claro que tem muita gente interessada em mim, mas não quis ninguém. Não, não quero mais um cigarro. Sabe o que você foi em outra vida? Uma rica prostituta londrina. Ou será que Jack, o estripador? --- Olha, eu tenho alguns números de telefones aqui, de algumas pessoas...bom, acho que elas se interessariam por você. Pelo que percebo, o seu perfil agradaria em cheio a elas. Você é bonito, inteligente e sensível; pelo menos deve com certeza ser para a maioria. --- Frutinha da vida. --- Bom, isso é da sua conta. Só vim até aqui porque o vi chorando; achei que pudesse ajudá-lo, mas...deixe estar. Bom, vou andando. Até uma próxima vida. --- Espere. O senhor não ia me passar os números de telefone? Chupo até o caroço de todas essas pessoas aí, senhor. --- Mas é claro, eu sei, eu sei. Olhe, aqui estão. Fique frio. Mas por que você não vem até onde moro; pode dormir lá. Ofereço-lhe minha hospitalidade. E depois, posso levá-lo a eventos que você irá adorar; festas onde se servem champagne, caviar, onde se tem gente rica e influente, gente que deu certo em São Paulo. --- Olhe, uma ave no céu, uma ave rara. Michel contemplou a ave voando por um céu de um azul acinzentado e voltou a olhar para o elemento, mas este havia sumido. A ave continuou sobre ele, olhando-o feio. Brasília, 20h15 Marcos tinha certeza que o meteorito cairia sobre o centro de São Paulo, mas não sabia precisar a data. Bom, até agora a mídia não havia se referido ao fato. Estariam todos indiferentes por quê? Ligou para um amigo, astrônomo profissional, e este não quis comentar nada, batendo-lhe o telefone na cara. Tratava-se de um meteorito, que provavelmente se desintegraria ao entrar na atmosfera. Mas havia algo em Marcos que dizia que esse aerólito não se desintegraria. Aquilo não passava de uma simples estrela cadente, não. São Paulo, Capital, 23h20 Já era hora de estar na cama, mas Michel estava com preguiça até disso. Olhou-se no espelho e se achou feio, como sempre. Amanhã era Domingo e ele não sabia se iria à missa ou não. Estava meio que resolvido a se tornar um protestante, mais para atrair dinheiro, pois assistia aos programas televisivos onde pessoas enriqueciam ao tornarem-se crentes. Estava se sentindo um Judas, uma pessoa sem valor algum; mas mesmo Judas tinha mais valor do que ele. Desvalorizado em tudo o que fazia, escreveu um pouco, escreveu um soneto. Gostava de escrever sonetos, mas sabia que jamais chegaria à altura de um Shakespeare. Criticavam-no em excesso por causa da sua falta de comunicação. O bom dia ao porteiro era dado bem baixinho. Mas antes não fora assim; antes ninguém lhe criticava porque ele falava pouco ou porque tinha cara de brabo ou porque...Bom, o fato agora é que não vendia. E das profissões que escolheu, todas exigiam um verbalizar, uma simpatia, uma desenvoltura excepcionais: jornalismo e vendas. Se bem que algumas pessoas achavam-no extrovertido; mas não era mesmo de seu feitio sair por aí abraçando pessoas pelas ruas. Era o senhor. Provavelmente o seu esteriótipo ou sua feiúra afastava as pessoas. Precisava sim era aprender com as invectivas, mas não sabia ainda o quê. I-mundo era o que ele era, de certa forma um excluído; e quando as pessoas vinham lhe dizer que elas deram certo em São Paulo, ele ficava meio chateado, sentindo-se fraco. Dar certo em São Paulo era em princípio ter um imóvel próprio, depois amigos, depois carros, depois tudo o mais. Mas talvez ele nunca desse certo, mormente porque o achavam bravo; e para se ter dinheiro parecia que se tinha de passar sob o crivo de uma população desconhecida, santa, adulta e altamente prejudicada em sua sensibilidade. Da última vez em que teve um estranho relacionamento, em que servia obviamente de capacho, ou melhor, estava disponível, uma multidão o pegou para Judas, revoltadíssima. Quando o coletivo tem controle sobre alguém, o que deve ser normal, resta a esse alguém viver da forma mais digna possível, mormente se não tem talentos, se não vê capacidades em si próprio. O Domingo seria o mesmo de sempre; era preciso procurar algo pra fazer. Meditou um pouco sobre a perfeição, idéia de um conhecido. Mas não conseguiu ver nada, estava pesado. Começou a escrever um soneto... Se
ela me aparecesse em algum sonho, Medonho
de tão lindo e avermelhado, Depois
cozinharia para essa alma, E
até que o sol nascesse tanto amor!, São Paulo, Capital, 10h33 Michel acordou se sentindo mal. Também, tinha tantos defeitos! Não era perfeito, e ser perfeito era um dos seus maiores desejos. Achava que vivia em uma época em que as pessoas tinham o Dom de deixá-lo inseguro. Cada um falava uma coisa ao seu respeito, mas o consenso recorrente era aquele da falta de comunicação, da introversão. O que sentia por dentro não era o que passava às pessoas, a não ser talvez os sentimentos ruins. Sentia muito por isso. Não seria, portanto, jamais um bom ator, por exemplo. Se tivesse que morrer num palco, não convenceria. Por vezes sentia-se gay, desses que os homens acham que não têm nem o direito de sair nas ruas. Mas era confuso. Lembrou-se de que quando era um menininho, passeava por praias desertas com o rádio do som da mente ligado em theme from mahogany, música que adorava. E as gaivotas passeavam sobre ele, dizendo-lhe algo que ele fingia entender. Talvez fosse mesmo um desses gays, mas no esteriótipo, tendo de ouvir múrmurios eternos, sem poder nenhum, de compra ou de qualquer coisa. Pensou nas mulheres, que elas não eram culpadas, mas felizes demais por serem tão diferentes dos homens mormente na questão do prazer. Pensou na clausura; sim, porque se murmuravam algo sobre sua sexualidade, então um dia quem sabe estaria na clausura; mas ele não queria isso. Tinha de aprender, ou seja, apanhar até aprender. O quê, ainda não sabia. Desistiu de ir trabalhar e ficou absorto no nada. Talvez jamais pudesse agradecer à magia do chegar lá. Brasília, 23h15 Marcos finalmente pressentiu que o meteorito iria cair sobre a Sé no dia seguinte. E todos estavam indiferentes. Sim, porque não acreditavam nisso. Ou será que ele estava louco? A estrela provocaria um tremor de terra de uns oito pontos na escala Richter. Foi repousar... São Paulo, Capital, 10h15 Michel, como sempre, despertou na mesma hora. Levantou-se rápido e foi tomar o seu banho. Do jeito que a população desconhecida o tratava, resolveu de novo não sair. Vagabundo! Mas saiu. E ao sair, ao atravessar a rua, um caminhão o atropelou. Michel caiu no chão ensangüentado. O caminhoneiro, Décio, desceu imediatamente do veículo e foi socorrê-lo. Estava indo para o Rio de Janeiro... --- O senhor está bem? --- Sim, não foi nada, apenas bati o nariz. Foi um milagre. Eu podia ter morrido. --- Vou levá-lo até uma farmácia. --- Não, não precisa. Você vai até que cidade? --- Rio. Eu não sou grevista. Não tenho medo de nada nem de ninguém. ---- Você pode me levar para o Rio? ---- Ok. Mas...você não é homossexual não, não é? ---- Se é o que dizem, não. Não dei certo nessa área também, pois tenho nojo, que é recípocro, e não sou musculoso. ---- Pois é, os musculosos não sofrem. ---- E os machões não dançam... ---- Iééééé....Mas eu gosto de dançar. Sabe, e desde que eu era criança. Posso acender um cigarro? ---- Sinto muito, mas não. Gosta de mar? ---- Gosto, aliás, adoro, adoro, adoro... ---- E quanto aos seus pertences? Olha, arrumou um amigo! Filha da mãe! ---- Meu amigo, tudo afunda e o futuro é brutal, não é? As pessoas são as sensíveis e as perfeitas. Acho que deixei o ferro ligado e o gás aberto. Não sei por quê, mas me deu essa vontade. Por favor, não me subestime demais. ----
Então é melhor corrermos senão o senhor será preso. ---- Meu amigo, o gás explodiu. ---- Não brinque com essas coisas, pois Deus castiga, hein? Não olhe mais para trás. | ||