BOLÉIA
Aline Carvalho
 
 

Quatro e meia da manhã. Não precisa nem olhar o relógio. Tem um trem (na acepção mais mineira da palavra), um trem que o desperta infalivelmente às quatro e meia da manhã. No maldito horário de verão, nem acorda a esperança de luz no nascente. Demora ainda. Acende a luz interna, fraquinha e, como sempre, dá de cara com o adesivo de São Cristóvão. Benze-se.

Olha com o rabo dos olhos o espaço vazio ao lado do santo, no painel. Mulher e filhos, que arrancou dali com os dentes, num desses acessos de loucura, exatamente dezessete dias depois que a desgraçada levou tudo de volta para a casa da mãe. Coça o saco. Automaticamente leva os dedos ao nariz e, com uma careta de nojo, faz intenção de não adiar o banho mais uma vez.

Como de hábito, cutuca com a ponta do pé Zé Padre, na outra cama apertada na boléia. Estranha, pois ele sempre grunhe revoltado em resposta ao cutucão. Zé Padre... José Belmiro de Oliveira, que se encantara por uma puta quando cursava o segundo ano do seminário... promessa feita pela mãe, cujo descumprimento resultou na morte do filho seguinte... uma pretinha roxa de tão preta, que já nasceu sem respirar... daí a alcunha. Zé Padre, companheiro de oito anos, merece outro cutucão, outra vez sem resposta.

Desencana. A bexiga clama por alívio e, se não tomar um café nos próximos cinco minutos, não responde por seus atos. Desce, alivia-se, acende o fogareiro e estranha de novo o colega ainda não ter aparecido.

Vai ver tava muito cansado... Tinha tocado o caminhão a maior parte do tempo no dia anterior. Deixa o pobre dormir mais um pouco. O ar frio da madrugada combina bem com o café quente e forte. Arruma os trens (mineiros, mineiros) e volta para a boléia. Encontra Zé Padre na mesma posição e, pela primeira vez, uma pontada ruim como a morte atravessa seu peito. Ruim como a morte porque era a morte, mesmo. Zé já tava até gelado. O que foi, meu Deus? Os comprimidos...?

Posto policial, telefonemas, necrotério, burocracia.

E retomar o caminho, que o frete não espera. A cama vazia no fundo da boléia lhe dá calafrios. Enfrentar o serviço sozinho lhe esquenta a cabeça. Precisará de ajuda. Mas onde um companheiro como Zé Padre?

Leva dias. Leva decepções. Um exalando álcool. Sabe que todos bebem, mas não assim de maneira descarada. Outro com cara de bandido, olhinhos pequenos e separados, nariz quebrado. Outro ainda cheirando a retardo mental. Vontade de desistir...

Mas, numa parada qualquer, encontra. Vinte anos. Dezenove fios de barba. Dezoito reais na carteira. Dezessete anos na aparência. Bons bíceps, essenciais para a carga. Desempregado. Pai caminhoneiro. Briga na família. Nome? José. Era esse.

José era calado. A estrada modorrando se alongava pelos dias e nada. Não adiantava perguntar o motivo da briga com o pai, proprietário do caminhão, que o fizera desistir de tocar o que seria seu para aventurar-se com desconhecidos... Acordava também às quatro e meia, e sem cutucão. Fazia ou tomava, fazia e tomava o café. O rosto imberbe sempre voltado para a frente, sempre monossilábico, cumprindo as obrigações com monossílabos, vai ver era melhor assim.

Noite de muita cerveja. Até o menino dessa vez abusou, mas não destravou a matraca. Tanta cerveja na idéia e a vontade de adiantar um pouco a viagem, mesmo de madrugada, mesmo com os reflexos em frangalhos. Uma hora, duas horas, três horas, e a bexiga de novo a incomodar.

Avisa ao companheiro que vai parar. Desce e caminha pelo mato baixo, estrada deserta não fosse a presença dos faróis fazendo caminhos de uma luz esmaecida e amarelada. Abre o zíper e prepara-se. Sente, porém, a presença felina de José bem ao lado, mais ao lado do que seria aconselhável naquele estado de coisas. Nunca tinha sido assim com Zé Padre.

José também abre a calça. Quanto mais tenta não olhar, mais olha a enormidade de cabelos negros e revoltos, insuspeitos num franguinho quase imberbe. Impressiona-se com o calibre e tamanho do que vê. Curto e grosso. Estremece involuntariamente. Para o outro, é como se não estivesse ali. O jato que jorra é poderoso, certeiro. Dura uma eternidade. Não consegue parar de olhar.

De novo na boléia. Alguma coisa acontecera ali, mas ele não sabe dar nome. Apesar da distância, sente o calor emanando da coxa de José. Magnético, imantado, atraente. Olha o companheiro de soslaio. Fosse mulher, o olhar seria oblíquo e dissimulado. Na penumbra da cabine, o companheiro olha para frente, olhar é eufemismo, está com os olhos semicerrados de quem acha que quer dormir mas não tem coragem.

Uma hora, duas horas, três horas de completo silêncio no espaço exíguo de uma vida. Chegam à parada. Cada um para sua cama, boa noite? O simples ato de urinar lado a lado, tão masculino, paira entre os dois como uma maldição. Será que José também olhara para ele e sentira o mesmo estremecimento? Uma pressão agradável e desconhecida no baixo ventre dificulta o sono que demora um pouco, mas vem.

Quatro e meia da manhã. Nem precisa olhar o relógio. Dessa vez, tem um trem em cima dele e é mão de José atravessando o labirinto entre as camas e pousada no seu peitoral. Sente um choque, não sabe feito de quê. O outro também treme.
A boléia gira, num universo desconhecido. Faz calor e frio, o coração ressoa pelo espaço diminuto e acorda o mundo. A mão de José vai descendo lentamente. Outra mão apalpa o vão da porta, também lentamente. Essa mão encontra o cabo de uma arma, tão rígido quanto o membro que José toca nesse último momento.