UMA ESCRITORA FRACASSADA
Eduardo Prearo
 
 

Não, ela não escrevia bem. E se alguém dissesse que ela escrevia bem, era pra lhe tirar o pouco de dinheiro que tinha. Numa manhã de Domingo, ensolaradíssima, quando os céus prometiam um dia maravilhoso de inverno, Gemima estava vacilante: não sabia se ia correr, se ficava onde residia lendo o final de um romance policial, ou se continuava a escrever o seu continho risível. Optou pela última alternativa. Fracassara nas letras, mas de teimosa ia batendo cada tecla do computador com uma leve esperança de um dia ser reconhecida, aplaudida. A competição parecia-lhe assombrosa. No entanto, escreveu naquela manhã por pouco tempo; foi dormir novamente, pois a cama estava ainda morninha. Sonhou que tinha muitos amigos. Levantou-se meio-dia e meia, vestiu um longo cor-de-rosa e foi andar pela avenida Paulista. Parou em muitas lojas, mas não tinha dinheiro nem para comer uma coxinha. Sim, Gemima comia carne; desistira de ser vegetariana; tinha preguiça de preparar todos aqueles legumes sem corpos de desejos, de fazer o arroz integral, o feijão azuki, o pão de centeio. Imaginava, por vezes, casando-se com um homem bom na cozinha, mas onde iria encontrar algo assim? Estava marcada e não sabia o porquê; achava que talvez tivesse passado dos limites em alguma festa chique, bebendo em demasia e falando alguma coisa terrível para a mulheres dos generais.

Os murmúrios alheios de gente estranha deixavam-na ensandecida, mas isso não era pior do que a solidão involuntária. Segundo eles, ela era uma bandida, alguém que merecia estar em um albergue de pobres. Gemima não entendia como podia existir gente desejando mal às outras, mas ela mesma desejara mal a muitas, o que era pecado, e talvez o efeito desse desejar vinha-lhe em forma de miséria. E a solidão involuntária, sem dúvida, existia por causa de sua feiúra - mas Gemima não era leprosa!


São Paulo tinha gente evoluída, gente de aquário que iria dessa para uma melhor. Gemima, por ela própria, achava que ela não; achava que iria acabar era indo para a Lua, aquele tumor de Deus que recebe as almas perdidas, os monstros. Onde havia lua, havia almas perdidas.

Quarenta e um anos era um bocado de idade pra quem achava que não havia vivido. Nesse eterno recomeçar, sentia-se já cansada. Se ao menos tivesse dinheiro para comprar passagem para algum país da Europa. Mas assim, sem mais nem menos, depois de velha?, diriam. Sim, e por que não? O problema do estranhamento dos outros para com ela não devia ser algo universal. Os franceses a viriam com bons olhos; os italianos, adotariam-na como filha; os ingleses ofereceriam-lhe chás todas as tardes, pontualmente às cinco; os dinamarqueses lhe dariam as mais belas flores; os irlandeses levariam-na para passear de calhambeque por campos de madressilvas. Não,não, talvez os estrangeiros fossem mais capazes de exclui-la pondo-a para trabalhar no baixo meretrício. Ou então nem isso.

Se ela comia e bebia quase que ao mesmo tempo, então era justo que as pessoas ao seu redor palitassem os dentes. De qualquer forma, ela, Gemima, jamais deixaria de ser inconscientemente grosseira para muitos. A vulgaridade nem sempre vem do berço. Os restaurantes onde comia pareciam limpinhos, mas ela não.E não cria que fosse por causa da falta de higiene que os amigos haviam se afastado. Apenas se encheram dela e deram-lhe o que ela merecia: um pé na b... Chega! Estava na hora de deixar de se sentir Audrey Hepburn; os espelhos eram contra tais sentimentos.

Essa gente que a deixou tinha tudo ou quase. Tinha casa própria, ah, isso tinha; uma vida estável. Descartaram-na com elegância, e isso a fazia olhar a vida como algo ultra-passageiro. A vida deles valia muito, a dela também, pois não a haviam matado! Sem dúvida o que lhe faltava era muita coisa, e dentre essas coisas um bom intelecto; o dela era o daquelas velhinhas de cento e trinta anos. Algo prorrompia no novo e medonho mundo da solidão: a repugnância alheia. Justo agora foram descobrir que ela era repugnante! Justo agora! Mas tudo bem, dizia a si mesma.

Achou-se sentada em um banco de um parque da Paulista. Era incrível como a desprezavam. Justina Oxama fora sua melhor amiga e também a melhor inimiga. Vez ou outra ela ligava, mas ligava agora com o intuito de no fim, quando Gemima já havia vomitado tudo sobre a própria vida, picá-la com um veneno meio mortal. Atrai-la, exauri-la e dar-lhe o coice. Bom, melhor isso do que nada, pensava Gemima. Na certa Justina precisava saber de minha vida para contar aos outros-que-deram-super-certo-e-eram-felizes, ou então para verificar a quantas andava a ausência de brilhantismo em mim, ou então para dar conselhos sobre como viver em uma miséria até que decente.

Justina Oxama odiava o cigarro; havia se casado com um protestante tabaquista, o que lhe causara um terrível choque. Quando via Gemima fumando, tinha ataques histéricos. Não era uma mulher vulgar; muito pelo contrário, possuia muitas amizades que a adoravam. Gemima se sentira, num outono qualquer, a última das mulheres por ter fumado na frente da amiga, no carro dos amigos da amiga - pura falta de consciência diante da própria embriaguez. Vai ver fora isso a causa do afastamento. Era assim mesmo, a favor desse vício nem o demônio ficava. A Fumante tinha seus dias contados, e nenhuma doença que tivesse dirimiria a culpa do dito cujo. Ponto para eles! E Justina parecia se empenhar em ser coerente e perfeita. Não era pecadora, pois não fumava. Enfim, prometia...

Gemima retornou humilhada do parque para o apartamento onde morava, pois sentiu-se, num súbito recorrente, incapaz e desinteressante. Sabia que tinha de apanhar e que nada, absolutamente nada a redimiria. Jesus não tinha tempo para ela. Era malandra e ponto final, uma espécie de Judas de saias. E agora, assim sozinha, se tivesse alguma doença, para onde iria? Para um albergue, certamente, como insistiam em murmurar desde 2002. Ligou para alguéns, necessitava falar, mas não foram muito simpáticos com ela, fazendo-na achar que ela não era simpática nem ser-humano. Escreveu um poema em um papel, mas aquilo jamais teria valor, ela sabia. Se o povo desconhecido a perseguia, esse povo venceria a batalha, com certeza. Ninguém sozinho poderia enfrentar uma nação inteira e sair vitorioso; era burrice pensar assim. Era pecado ir contra um país, um atraso, ainda mais com um qi baixo.

As minhas fotos em anexo seguem,
E algumas pétalas que são de gelo.
Tênue linha separa o inferno do Éden;
Não sei por que ainda penso em vê-lo.

Porque se o visse o oi seria tchau,
O olhar de amor que eu lhe daria, nada,
E eu partiria me sentindo mal,
Mui horrorosa para ser cantada.

Chata esta vida porque eu mesma quis;
Luzes da nau contemplo triste, morta;
De algum radinho uma canção de Elis.

Efeitos de um passado agora errado;
O tempo vai levando o sonho inteiro
Num trem de carga ou num cavalo alado.

Gemima rasgou o soneto e jogou-o no lixo. Se tivesse dinheiro, faria uma plástica; perderia talvez a identidade, mas não a identificação. Como sonhava que corressem atrás dela para agarrá-la à força! Mas e se quem fizesse isso fosse o King Kong? Não, com certeza em qualquer filme que participasse seria figurante, nunca uma protagonista. Não tinha graça, sabe aquela graça da Ave Maria? Gemima era protagonista da própria vida, e não tinha nenhum Spilberg nem câmera nenhuma para eternizá-la, para eternizar sua feiúra; tinha talvez os espíritos - já não dizia Shirley Maclein que a vida era um palco? Então, quem sabe os espíritos assistissem à Gemima, quem sabe pra eles essa vida real e ao mesmo tempo ilusória fosse melhor que cinema? Mas ninguém assistia ao filme da vida dela, isso era certo. Abriu uma garrafa de licor de cassis e a esvaziou em menos de quinze minutos. Antigamente se achava protegida, iluminada; agora, como todos eram protegidos e iluminados, teria de se achar o quê? Talvez uma malandra, uma marginal, alguém que não deu certo, alguém que não tinha do que se gabar. Viu da janela algumas surdas-mudas passando, olhou para o jardim repleto de rosas amarela-claras e conformou-se. Uma escritora fracassada, uma vida antigamente longa, mas agora curta...o tempo, o tempo, ah, o tempo.