CONSUMINDO-SE | ||
Edna
Lopes | ||
Acorda cedo. Muito cedo.E começa seu dia de jornada tripla pela cozinha arrumando, cozinhando, até sair afogueada para o trabalho que não fica longe de casa. Lá, de touca e avental, enfrenta a maratona de alimentar 450 crianças nos dois turnos de uma escola, trabalho que lhe garante o sustento, mas não a realização do sonho de um dia ser rica. Gosta quando tudo dá certo. Dispensa cheia, crianças gritando "tia quero mais", a gritaria na fila, o gracejo dos colegas, a pilha de panelas pra lavar. Quando dá errado, só se chateia mas não é de sua natureza reclamar. E já é hora de voltar e está exausta. 17 horas. Entra em silêncio. A casa dormita. As crianças ainda estão na escola, o marido no trabalho. Ocupa-se em fazer o jantar e providenciar o almoço do dia seguinte; depois, em dar um jeito na casa, lavar roupas, lavar a louça após todos saírem da mesa. Parte da jornada se encerra com o Jornal Nacional. Toma um banho, põe uma camisola surrada e se instala no sofá entre as duas meninas. O pai delas já ronca no quarto, extenuado do trabalho pesado na fábrica de cimento. A trama da novela está movimentada. Vilãs e mocinhas se alternam na disputa pelo amor do vilão que se faz passar por mocinho. A vilã é assustadoramente má e a mocinha é exageradamente boa. Fala de correr atrás de seu sonho, de não desistir. Pensa consigo, que ousadia falar de sonho a alguém que leva uma vida como a sua. Não há sonho, não há vida. Apenas o tempo que passa. Leva as meninas para a cama e vai se deitar também. O corpo dói e se pergunta até quando vai agüentar. Deita-se cuidadosa, não quer acordar o marido. Na cama, uma pausa para pensar em si. Aos poucos, o corpo vai relaxando e se deixa levar pelos pensamentos que aparecem, desordenados. Pensa no tempo em que sonhou com uma vida diferente, com relação ao casamento. Tudo está certinho, tem sua casa, seu trabalho, duas meninas lindas, mas não é feliz, embora só admita isso para si mesma. Nunca tem ou teve o afeto do marido. Sempre foi seco, de pouca conversa. Nunca foi dado a gentilezas e essa é a magoa que guarda seu coração. Acalenta um desejo secreto, um sonho de ser amada, desejada, querida, como as mocinhas dos romances e das novelas. Pede perdão a seu santo de devoção, mas intimamente confessa sua insatisfação com esse casamento. Sente-se murchando, sua mocidade passando e sequer deu um beijo na boca, de verdade. Quando aquele por quem alimentou alguma ilusão tomou-a, pela primeira vez, foi quase um estupro. Das outras vezes aquiesceu apenas e, com o tempo, passou a achar bom quando ele ficava semanas sem incomodá-la. Não esqueceu seus sonhos.Guarda-os no mais dentro de si e nessas horas de descanso físico, recorre a eles para sentir-se ainda viva. Não é de pedir muito à vida, mas admite que seu sonho mais secreto, de consumo mesmo, é viver um grande amor. Sonha com beijos demorados, molhados, língua e dedos passeando em seu corpo. Seios intumescidos com a fantasia da boca de um homem a sugar-lhes, com o cheiro que imagina sair desse corpo. Sonha com noites de amor e loucura, com sexo de verdade, com dançar de rosto colado, com carinho, ternura e o amor de um homem tão romântico quanto ela. Fantasia. O encontro, o encanto, o ato.Transpira, arde entre lençóis. O marido resmunga no sono. Fecha os olhos e mergulha dentro de si. Nada pode atrapalhar . Ali é território seu e não vai abrir mão do sonho, que no vazio da noite a transforma numa amante solitária. Dorme e acorda cedo. Muito cedo. | ||