SILVINHO, O ZELADOR
Doca Ramos Mello
 
 

Estou com os olhos encharcados. Acho que nunca mais vou ficar assim tão emocionada, depois ter visto o piloto do land-rover declarar que gostaria de cumprir a pena dele cozinhando, que grande alma! Porque ele fez excelentes estudos gastronômicos com os cozinheiros do PT, da Petrobrás, foi companheiro de bancada de fogão do chef Delúbio Soares, que inventou o célebre Cozido de Matemática ao molho de Dentes Separados e Boca de Siri, além de ter sido também contemporâneo do mestre-cuca ZéDirceu, o criador do Macarrão ao Alho, Ferro e Guerrilha p'ra Inglês Ver, então Silvinho têm um negócio que os americanos do norte chamam de nôurrau e isso quer dizer que a pessoa é um craque na coisa, Silvinho é esse craque. Por isso mesmo ele hoje é o chef do Tia Leila, grande restaurante de São Paulo e, não obstante o trabalho diário com as panelas estreladas - se bem que não deva gostar muito que se fale em estrelas - o moço ainda teve a piedade de se submeter a cumprir pena por conta do mensalão e ainda se ofereceu para cozinhar. Cozinhar é uma coisa muito amorosa...

Ia me esquecendo... Silvinho também fez estágio gastronômico ao lado de Palocci, o cozinheiro da República de Ribeirão Preto, restaurante famoso pela freqüência de moças alegríssimas e que faliu por conta de um problema com a vigilância sanitária: parece que o pessoal da cozinha não lavava as mãos corretamente e por isso azedou a Sopa de Malas Monetárias, pièce de résistence da casa. Hoje fechada também por causa da indiscrição do caseiro local, que contou ao quatro cantos do mundo a pouca higiene do estabelecimento, onde, dizem, só as verdinhas eram lavadas, contadas e divididas, o resto era uma sujeira muito grande. Palocci cozinha atualmente em novo restaurante, o Senado Sem-Vergonha, ao lado do cozinheiro alagoano conhecido como Renan, o Grande Amante, um apaixonado especialista em aves e peixes.

A questão - tem sempre uma questão - é que não há cozinha lá no Butantã, lugar que Silvinho mesmo escolheu para cumprir pena.

Sim, muita gente meteu a lenha só porque Silvinho escolheu o Butantã. Bom, na verdade é costume no Brasil o réu escolher a pena, o local, a hora, só que muita gente vai presa sem saber disso, é uma ignorância, aí cai na cela e babau, ora. Aconteceu com uma moça chamada Angélica, que roubou um pote de manteiga, imaginem, só porque o filho dela queria pão com manteiga, ai, o pobre é uma coisa muito pobre mesmo, mas enfim... Então ela foi p'ra cadeia porque não disse para onde queria ir, ué, quem manda ser lerda. Dissesse que gostaria de pagar a pena no balcão da padaria, ali o que não deve faltar é margarina, manteiga, ora. Pois ficou mofando no cárcere um bom tempo p'ra deixar de ser lesa, tinha de ter falado p'ro juiz ó, eu quero cumprir a pena na padaria em tal bairro, e nem precisava ser uma padaria de fazer pão, isso é detalhe idiota, mas bobeou, dançou.

Silvinho não conseguiu a cozinha, o país aqui é muito injusto, isso sim. Não importa se ele indicou um lugar que não tem cozinha, se ele queria cozinhar, custava arrumarem um fogãozinho especial para ele? Algum exemplar de grife, importado, de aço inox, acendimento automático, forno com grelha, esses detalhezinhos ínfimos, afinal quem já pilotou um land-rover não vai querer ficar de frente com um quatro bocas das Casas Bahia, o homem tem casa em Ilhabela, minha gente!

Silvinho é zelador. Não é um reles zelador, é um zelador que vai ao trabalho duas vezes por semana e trabalha das 8h ao meio-dia, dirigindo-se ao local a bordo de finíssimo carro prateado, aliás, como fazem todos os zeladores nacionais. A única diferença é que, por trás de sua simplicidade e simpatia existe a gentileza que ele faz ao sistema carcerário, a zeladoria dele é do tipo outros quinhentos. E quantos quinhentos, ah...

Funcionários da subprefeitura do Butantã andaram falando umas coisas aí, fofoqueiro é o que mais abunda nesses locais, portanto não vale a pena comentar. Mais importante mesmo é saber que já existe, no Brasil, alternativa para as penas, ninguém mais precisa entulhar as cadeias, aquilo é uma falta de higiene nojenta. A pessoa pode cometer aí alguns, como diria V. Exa. Metalugíssima, enganos, uns alopramentos, e depois pagar por eles à própria escolha, é uma coisa muito boa.


Da minha parte, meu sonho de consumo é cometer alguns crimezinhos de pouca monta para depois ser entrevistada, capa de revista e quem sabe deputada, governadora... Desde já me ofereço para cumprir pena em alguma biblioteca que tenha ar-condicionado, seja bem equipada com exemplares de literatura nacional e em cidade à beira do mar, porque faz tempo vivo com o pé na areia, poderia não me sentir muito à vontade longe das ondas, fora do meu habitat natural. Bom, escolho BH para cumprir minha pena, cidade que, como todo mundo sabe, não tem mar, mas o governo pode muito bem se mexer e dar um jeito nisso, afinal não vão mudar o rumo do rio São Francisco? Então. Ou, com certeza a CNBB poderá alegar que meus direitos humanos marítimos estão sendo afetados, os psicólogos dirão que isso me baixa a auto-estima e, como eu tive uma avó mulata clara, acho até que Dona Matilde deve fazer um pronunciamento acalorado contra o preconceito racial do qual eu aqui estaria sendo vítima, porque a sociedade brasileira tem uma dívida com os afro-descendentes, é preciso incentivar as cotas, há poucos escritores negros, já dizia Zumbi, etc., etc.

Pensando bem, acho que eu poderia até mesmo processar o Estado por negligência e...