ESTRANHOS
CARNAVAIS | ||
Raymundo
Silveira | ||
O maior mérito de Freud foi revelar os instintos soterrados no porão do inconsciente e a luta destes contra aquilo a que ele denominou "Superego" que, por sua vez, nada mais é do que a censura imposta pelas próprias circunstâncias ambientais e sem a qual a convivência social se tornaria intolerável. João Paulino ignorava tudo isto, mas mesmo assim era um exemplo vivo da expressão bipolar daquelas duas características do comportamento humano. Em outras palavras, ele revelava durante todo o ano o lado repressor dos seus impulsos anímicos. Mas a cada intervalo de 365 dias, havia quatro em que estes se manifestavam em toda a sua plenitude. Esses quatro dias em que o lado animal de Paulino subjugava por completo o seu superego, coincidiam exatamente com o Carnaval. Da Quarta-feira de cinzas até o próximo Sábado gordo era tão sisudo quanto o mais circunspecto ancião da sua terra. Exercia a função de telegrafista e, certa vez, recebeu a condecoração de "Funcionário Público Padrão". Nunca chegara à repartição um minuto depois, nem saíra 30 segundos antes do seu horário de trabalho. Não foram poucas as vezes em que acedera aos pedidos do chefe para substituir eventualmente colegas faltosos. Afora isto, vivia do trabalho para casa; desta, para o supermercado; deste, para resolver os pequenos problemas do dia a dia de um lar de classe média, média. Além disso, ajudava a mulher nas tarefas domésticas: lavava a louça, lustrava os móveis, limpava os banheiros e fazia pequenos consertos. A única exceção a essa rotina era as reuniões do Rotary Club às quais comparecia religiosamente todas as Sextas-feiras, sempre acompanhado da esposa. As férias ele as passava também com a mulher e os filhos num balneário discreto, simples e barato. Quando era raramente convidado a uma festa de aniversário somente se deixava ir devido às crianças - ele só freqüentava festas de crianças, e mesmo assim por causa dos filhos -, mas nunca ingeria um copo de cerveja sequer. Bebia, no máximo, uma taça de suco de frutas ou de guaraná. Bem, este era o "Paulino Superego". Mas quando chegava Fevereiro ou Março e com um destes a Sexta-feira, véspera do Carnaval, a metamorfose que nele se operava poderia ser comparada à das pessoas a quem se atribuía o fenômeno de virar lobisomem. Os "trabalhos" tinham início às 21 horas em ponto e prosseguiam até as seis da manhã da próxima Quarta-feira. A "entrada" era uma dose dupla de uísque seguida de cinco canecas de chope. Daí por diante o seu comportamento era tão semelhante ao que era antes, quanto o de um símio numa loja de louças ao de uma preguiça dormindo. Principiava por cantar as canções bregas de Reginaldo Rossi: "Garçom / Aqui nesta mesa de bar / [...] "Garçom / sei que estou enchendo o saco / É que todo bebum fica chato..." [...] "Saiba que o meu grande amor hoje vai se casar / Quero tomar todas / Vou me embriagar...]. Depois partia para as marchas carnavalescas mais antigas: "Ô jardineira por que estás tão triste..."; "A coroa do rei / Não é de ouro e nem de prata...". "Por que bebes tanto assim rapaz? / Chega já é demais / Se é por por causa de mulher é bom parar". Passava a seguir para as cantigas do carnaval daquele ano: "Tanto riso / Ó quanta alegria / mais de mil palhaços no salão..." Até descambar para as mais reles paródias de puteiro: "Na tua casa não abunda leite: / Na minha abunda / Na minha abunda. / Na tua casa ninguém racha lenha: / Na minha racha, na minha racha". "Dizem que Cuba vai lançar / Um foguete à Lua / Será que Cuba lança? / Será que Cuba lança?" E emendava a madrugada com a manhã. Bebendo, cantando (canções e todas as mulheres que passavam), gritando, gesticulando como um macaco. Numa destas noites entrou no toalete, caiu por lá mesmo e ao acordar na manhã seguinte estava preso. Inadvertidamente, trancaram-no por fora. Ingeriu um copo de uísque e, como tinha de cor o número do telefone do gerente, ligou para ele. "A que horas vais abrir o bar?". "Somente às dez". Tornou a ligar mais tarde. "A que horas vais abrir o bar?" "Já te disse, somente às dez horas. Não adianta insistires; não entrarás antes!" "Quem falou em entrar? Estou querendo é sair!" Num Domingo de um dos Carnavais da década de 1970, bebeu tanto ao ponto de perder a consciência. Na Segunda de manhã apenas um som distante ressoava em seus ouvidos. Mas era somente um Ô, Ô, Ô, Ô sem qualquer melodia, ou letra. "Tu sabes o que tu fizeste ontem?". Pela primeira vez ele "tremeu nas bases". Não lembrava absolutamente de nada. "O Dr. Justino está aí fora e quer falar contigo". (Dr. Justino era o juiz da comarca). Levantou-se desejando que uma guerra nuclear tivesse início naquele preciso momento. Foi ao banheiro e se olhou no espelho; e aquilo que viu não concorreu nem um pouco para lhe aliviar a angústia. Pelo contrário: viu uma "máscara" e não a própria face. Os olhos injetados de sangue tornavam-lhe rubras as escleróticas que, normalmente, deveriam estar brancas. O cabelo em desalinho, a barba de dois dias, a inchação em torno das órbitas, configuravam a imagem de um doente muito grave. Cogitou de cometer suicídio, mas nem que se decidisse a isto não haveria como nem com quê. Escovou os dentes sem mover, pela própria vontade, um único músculo. Os tremores se encarregaram de massagear-lhe os dentes e as gengivas. Tomou uma ducha morna, vestiu-se e, se enchendo de tudo o quanto lhe restava de ânimo, abriu a porta. "Bom dia, Dr. Justino". "Bom dia, Paulino. Desculpe lhe incomodar a esta hora em pleno Domingo de Carnaval". Cinqüenta por cento da sua angústia cederam como se tivesse ingerido os ditos cinqüenta, mas não "por cento" porém de miligramas de Valium. Todavia, continuou apreensivo. "O que houve, Dr. Justino?" "Ainda não houve, espero que vá haver". A ansiedade retornou como se tivesse regurgitado todo o tranqüilizante. "É que necessito me comunicar urgentemente com uma pessoa numa vila distante e lá não existe DDD. Então venho pedir ao amigo o favor de mandar um telegrama". Na Terça-feira do Carnaval de 1981 Paulino entrou no seu automóvel às sete da manhã. Bebeu meio litro de uísque e seguiu para a Serra Grande. A cada 50 quilômetros parava para "tomar uma". Passou o resto da manhã e toda a tarde bebendo, cantando e pulando cercado de dezenas de mulheres. Três delas entraram no seu carro às seis da tarde, quando voltava para a sua cidade. Ele diz agora que só se lembra até aí. A próxima percepção de sua consciência foi se ver imóvel num leito de hospital. Não sabia nada do que acontecera. Era uma manhã de Abril. As três mulheres haviam morrido e ele estava paraplégico. Mas ninguém lhe disse isto. Pelo menos por enquanto! | ||