A VITRINE E O ESPELHO
Raimundo Antonio de Souza Lopes
 
 

Às vezes nos deparamos com situações onde a realidade nos foge e mesmo assim nem percebemos. Essa semana, eu, ao passar ao lado de uma vitrine - dessas que existem aos milhares, em lojas de departamentos, principalmente em shoppings - me fiz curioso por ter visto um manequim vestido numa roupa visualmente muito bonita. Acerquei-me dela e ao me posicionar frente a frente com aquela forma inanimada de vida vi-me refletido através do espelho - colocado estrategicamente por trás do manequim - dando a impressão que seria eu e não o dito cujo, a estar ali, impassível, distante, solitário, indiferente, a quem ia ou vinha. Tomei um susto, não sem antes ter gostado do que vi... Claro. Eu era o modelo perfeito: o protótipo ideal de consumo onde a cultura de massa nos anestesia e nos transforma em inconscientes consumidores daquilo que não somos, mas queremos ser. Fiquei parado, imóvel completamente, me admirando, me vendo noutro contorno, lascivamente satisfeito com o refletir assim tão bem acabado de minha escultura. Mas, quase que de pronto me veio à consciência da realidade a me buscar para mostrar toda ilusão daquilo que estava vendo. Ela devolveu-me o censo e fez-me ver que aquela imagem, primeiramente, capturada pelo espelho da vitrine, não era eu. Não o eu real, apenas uma visão daquilo que os olhos vêem quando querem focar algo, não significando ser aquilo a duplicidade do seu corpo, de sua estrutura. Em segundo lugar, eu estava pelo lado de fora da vitrine, o espelho pelo lado de dentro, preso em si, sem possibilidade de sair e caminhar. O corpo não tinha cabeça. A imagem refletida era apenas a minha cabeça por trás do boneco dando a falsa ilusão de que tudo era vivo, móvel, dinâmico. Tentei sair do campo visual do espelho e levar comigo aquele corpo tão bem feito, não pela natureza divina, mas por mãos habilidosas em seu ofício, mas, o que consegui foi ver a minha cabeça pensante sumir do espelho e deixar umas roupas bem acabadas em um boneco sem cabeça. Aí ele ficou feio. Horrível sem cabeça. Já não era a imagem perfeita de um homem por trás do espelho, nem a ilusão passada pelo inconsciente dos que fazem do seu eu, a perfeição de querer ser daquela forma.

Fiquei pensando: se nos iludimos tanto achando que aquilo que vemos refletido no espelho é a nossa realidade e que dogmas, regras, valores morais, sociedade, jamais serão frutos de mudanças, damos a entender, também, que jamais conseguiremos transpor os obstáculos que criamos durante nosso ciclo de vida. Ficarmos presos a captura do espelho é não termos consciência de quão valiosa é a nossa individualidade, a nossa identidade particular, característica, somente, de cada um de nós.

A vitrine nos obriga a olhá-la sempre que passamos ao seu lado, mas, parar para observá-la de perto é um desejo inconsciente de sedução de querermos nos transformar em manequins de exposição, sem vida, imóvel, servindo apenas de estereótipo para outras enlaças.

Saí dali receoso por me ver fazendo duas coisas: olhar o manequim de perto e me ver dentro dele; o espelho me deu a sensação de algo novo, inédito, com cabeça pensante e corpo transformado em objeto do desejo, valioso dentro das roupas criadas exclusivamente para atender aos padrões que ora somos obrigados a consumir.

Mais na frente, quase que no meio da rua, feito menino que não sabe andar em calçada, eu parei. Parei e pensei: ora, por que me preocupar com tudo isso? Afinal de contas sou apenas um ser pensante no meio dessa multidão ensandecida pela quimera de ser aquilo que pouquíssimos conseguem alcançar, mas, que se iludem, sempre, toda vez que passam em frente a uma vitrine e dentro dela há um manequim de borracha sintética com roupas da moda e um espelho que os capturam, deixando refletir apenas a fantasia de uma imagem sem vida, fantasmático.

Já sei: da próxima vez que passar por uma vitrine e me sentir tentado a olhá-la, vou me lembrar - antes de ser novamente hipnotizado - que poderá ter lá dentro um espelho para capturar a minha imagem irreal, portanto, para não me fazer cabeça sem corpo; imagem sem sonho e ilusão sem fato, vou me conscientizar que ambos são de vidros, apenas.