O
JUDEU LAZARENTO | ||
Maria
Luísa Rocha | ||
Tudo começou em uma quarta-feira tediosa, quando Clara descia a rua, atrasada para o trabalho. Ao passar em frente a uma confeitaria, viu um pequeno cachorro ser escorraçado pelo funcionário que estava lavando a calçada, jogando a água suja com a vassoura em cima do animal, para afastá-lo de lá. O cãozinho custou a se levantar, tamanha era sua debilidade. O que mais impressionou Clara não foi a cena de insensibilidade, mas o estado lastimável do cachorro, cheio de feridas purulentas e quase sem pelos. Uma nojeira só. Tentou ligar para sua mãe, todavia não conseguiu completar a ligação e, apressada e infeliz, continuou seu caminho. À noite, já em casa, contou o acontecido e falou de sua decepção consigo mesma por não ter feito nada para ajudar. A Mãe sempre ensinou que o Mal tem freqüentemente sua origem na omissão. No dia seguinte, quinta-feira, a Mãe saiu de carro em busca do animal, mas foi em vão. Nenhum sinal dele. Talvez já estivesse morto. Sexta-feira chegou rapidamente. O tempo estava nublado, prometia muita chuva para a noite. A Mãe lembrou-se que era véspera do feriado de carnaval e foi ao supermercado fazer compras para o final de semana. Já passava das vinte horas, quase não havia mais pessoas na avenida e ela apressou os passos, temerosa e cuidadosa. De repente, no meio da escuridão, viu uma coisa horrorosa passar lentamente a sua frente, arrastando-se em direção a um canto escuro perto de uma loja de festas. Parecia que estava procurando um lugar para um ato definitivo. Sentiu um cheiro fétido de despedida no ar e resolveu observar melhor. Qual não foi sua surpresa ao se deparar com um cãozinho tal qual o descrito por sua filha naquela quarta-feira da culpa. Só podia ser ele. Teve esta certeza com muita tranqüilidade, pois isto era natural em sua vida. As coisas aconteciam (em obediência a um Interlocutor maior) e cruzavam seu caminho. Deu um pedacinho de presunto para ele que comeu com resignação. Parecia um condenado fazendo a última refeição antes da forca. Um olhar todo melado - remelas quase fechando os olhos - revelava uma tristeza infinita.... A Mãe conversou com ele e pediu para esperar um pouco que em breve voltaria com socorro. Foi para casa, guardou as compras, pegou ração e água e subiu rapidamente a avenida. Com nojo e determinação, enrolou o cãozinho em um trapo velho e carregou-o até sua casa. No meio do caminho, batizou-o de Bob. Entrou sorrateiramente pela garagem e escondeu-o no quartinho da faxineira. Agradeceu por já ser tarde e véspera de feriado, porque haveria pouco movimento de carros e moradores. Se descobrissem o hóspede indesejável alojado ali - naquele estado assustador - as coisas se complicariam para o seu lado. Havia uma vizinha pronta para o bote, disposta a prejudicá-la por qualquer motivo. Bob era um prato cheio. Tinha que ocultá-lo de maneira perfeita. Subiu as escadas com preocupação, decidida a voltar só depois da meia-noite, quando praticamente não haveria mais risco. No horário das doze badaladas, desceu e abriu a porta. Bob nem se mexeu. Estava exausto, disposto a dormir um sono sem volta. Condoída, a Mãe voltou para casa. Dormiu um sono inquieto, que não trouxe descanso algum. Sábado de carnaval. A cidade estava vazia e a Mãe poderia levar o alimento para Bob com certa tranqüilidade. Atravessou a garagem com cuidado, abriu a porta, espiou para os lados e, com o coração tremendo, retirou Bob do quartinho e levou-o até a rua para fazer as necessidades. Retornaram rapidamente e ela escondeu-o de novo. Passou o dia rezando para que ele não latisse e se traísse. Senão, tudo estaria terminado. Seria denunciado e levado para a morte certa em uma câmara de gás que eliminava este tipo de ser incômodo. Sabia que este era o destino de todos os cães de rua capturados ou denunciados. Em alguns lugares eram assassinados a pauladas, em outros, por afogamento ou envenenamento. Mas sempre o final era uma morte cruel, dolorosa e sem piedade. Domingo chegou com promessa de sol. Isto não era bom para Bob. O tempo chuvoso e nublado fazia as pessoas ficarem mais quietas em casa, recolhidas, permitindo uma maior proteção. Novamente a Mãe esperou as coisas se acalmarem para ir cuidar dele no seu gueto improvisado. Ele já balançava o rabinho pelado assim que ela chegava e seu olhar através da remela era de profunda gratidão. No domingo à noite, logo após ter levado o animal para a rua, exatamente ao acabar de fechar a porta, deparou-se com o morador do segundo andar. Ele olhou-a desconfiado e perguntou se precisava de alguma coisa. A Mãe tremeu toda e engasgada procurou uma desculpa, apavorada com a possibilidade de um latido ou um sinal que denunciasse a presença indesejável ali na garagem. Disse que precisou buscar um remédio para formigas que estava dentro do quartinho, mas que não o encontrara. Desculpa mais esfarrapada não poderia haver. Ele a olhou com desprezo pela mentira tão deslavada e sem dizer mais nada, subiu as escadas, dando-lhe as costas. Boa noite, disse ela. Ele não respondeu e entrou para seu apartamento. Esta noite a Mãe teve pesadelos com cobras e escorpiões. Depois, viu Bob sendo arrastado, gritando por ela, enquanto uma fogueira ardia e uma multidão gritava ensandecida: - Queimem o judeu, queimem. E a bruxa também. Morram os dois. Morram logo, seus demônios. Acordou suando, apavorada, e foi até a cozinha beber um copo de leite. Sentou-se e ficou esperando o dia chegar. Segunda-feira. A Mãe foi pela última vez até o gueto. Sentiu um cheiro desagradável e descobriu fezes perto de Bob. Rapidamente, ajeitou a máquina fotográfica para tirar uma foto dele naquele lugar. Em seguida, carregou-o e saíram pelo portão. Finalmente, Bob iria tomar um banho e se tratar em uma clínica ali perto. Três meses depois, a segunda fotografia. Outro Bob estava registrado em um pedacinho de papel. Bob antes e Bob depois. Vocês têm que ver para acreditar que milagres acontecem em tempos de carnaval. | ||