VIDA NA GAVETA
Luís Valise
 
 

Desde a infância ela sabia que era amor. Vicenzo era garoto loirinho e levado, filho de um casal de italianos que morava pelos fins da rua. A mãe percebia seus olhares e suspiros:

- Pára de sonhar com o carcamano, filha, isso não é boa coisa.

Margot não queria saber se Vicenzo era ou não boa coisa, naquela época quem mandava era o coração, e ela ficava na janela acompanhando as brincadeiras dos meninos na rua, em jogos de bola, subidas de pipa, corridas de pique. E seu coraçãozinho acelerava pelos cabelos aloirados e rebeldes, pernas ligeiras, braços fortes, dentes brancos.

Na mesma classe, Grupo Escolar Presidente Vargas, um dia vieram com a novidade:

- Amanhã todo mundo arrumado porque vão tirar fotografia dos alunos!

Ela foi arrumada, e perfumada. Foto é pra sempre.

Vicenzo foi com a roupa de todos os dias, a mesma ginga. Margot deu jeito de ficarem juntinhos, os braços roçando diante do fotógrafo afobado. A turma em alvoroço. Um custo. Podia demorar mais. Ela saiu sorrindo. Ele ria.

Guardada em papelão grosso, todo dia uma espiadinha, risada gostosa, braço quente.

Cresceram os peitos, apontou a barba, casamento com outro. A mãe não queria, ela teimou, mandou convite, sem ele a festa não seria a mesma.

Barril de chope, música, no meio da confusão: a dança. Primeira vez a mão, os olhos brilhantes, coxas firmes, e o riso, o riso, cabelo rebelde.

- Todo mundo junto pra foto!

Ela olhou, Vicenzo ficou por perto. Foto é pra sempre.

Guardada no papelão amarelado, junto com a outra, de vez em quando uma espiadinha. Os olhos brilhantes, o riso, lembrança da dança, a mão na cintura.

Sem saber dele nunca mais, um dia o choque, o susto, o encontro na rua, a cegueira no olhar brilhante. Única diferença o bigodinho fino sobre o riso.

Poucas palavras, muito rápido, um hotel. (Fotos do quarto na memória.)

E só. Ela acha que foi muito.

E hoje isto: no jornal. Sempre bem na foto. Cabelo teimoso, olhos abertos, bigodinho fino. Fio de sangue corre da boca. Tá escrito que foi faca.