UMA CRÔNICA PARA MARIANA
Virgínia Pinto
 
 

Minha Filha,

Dentre tantos olhares espantados e incógnitos eu procurava o seu. O palco fora montado de tal forma que vocês formandos, ficassem voltados para a platéia para que os pais, familiares e amigos pudessem desfrutar de todos um pouco mais de perto, como se ainda restasse em cada um de vocês uma necessidade de nós mesmos.

Meu choro da tarde, na volta do cabeleireiro, aliviou o barril de pólvora que havia se transformado meu coração. Eu estava feliz, serena, confiante, orgulhosa de você e levava sorrateira, dentro de mim, uma cumplicidade com tudo aquilo que era seu e jamais caberia num canudo.

Os tios e amigos que se propuseram a sair de casa para te prestigiarem na formatura, me ligavam no celular o tempo todo, para avisar que estavam parados no trânsito, no caos que se transformou São Paulo após a forte chuva que caiu, sem dó, nem piedade. No meio daquela suave música, dos discursos e dos nossos convidados que chegavam trazendo um sorriso cheio de carinho, eu continuava olhando você e viajando no tempo. Enxerguei você na escada do palco do colégio, se formando no pré-primário com a beca azul e o capelo que eu mesma havia feito. Lembra? Vi você magrinha, pequena, posando sorrindo, para seu primeiro diploma. Seus amigos fiéis e eternos vieram te fazer companhia em minhas lembranças e eu segui pensando na minha menina dedicada, estudiosa, brava e rebelde que eu caminhei ao lado e tive o privilégio de poder dar as mãos durante essa caminhada.

- Mãe, põe a fita da Xuxa!

E eu ia e voltavada casa da vovó, todos os dias, ouvindo Ilariê. Insuportável!

- Mãe, este ano vai começar e eu vou sozinha pra escola! Nem vem com suas manias de não me deixar fazer nada!

Como eu podia te dizer que a rua era perigosa, que eu tinha medo do mundo te maltratar sem te deixar insegura?

- Mãe, eu não vou mais pra escola. Tem umas meninas que não querem ser minhas amigas!

Lá fui eu conversar com a coordenadora, minha ex-professora, que carinhosamente me ensinou o que era uma briga de lideranças e que minha ‘indefesa filhinha’ era uma líder em apuros.

- Mãe, eu gosto dele, mas ele não gosta de mim. Só quer ser meu amigo. O que eu faço ?

Como ensinar a você que seu primeiro amor não correspondido não seria o último e que aquele menino era um 'idiota’ por não gostar de você?

- Mãe, eu quero pintar a unha de vermelho!

- Ficou louca?

‘ - A Ivani e a Luciana vão pintar pra mim.

- Só por cima do meu cadáver!

Tamanha intransigência minha fez você ligar pro seu pai pedindo socorro.Ele liberou sua vontade de transgredir. Tempos depois, mais abusada ainda, você inventou um esmalte azul, feito de tinta esferográfica e quase matou a manicure pra tirar (ela lembra disto até hoje).

Eu nunca sabia se já era hora das coisas, porque dentro de mim você não tinha crescido, mas você sabia e queria.

- Mãe, quero mudar de colégio! Estou cansada de estudar desde pequena no mesmo lugar.

Ai Meu Deus! Você sempre abria os novos caminhos e eu estremecia por dentro, mas confiava na sua força e determinação.

Em tempos difíceis veio a escolha da faculdade, dos estágios e da futura profissão. Dúvidas, dúvidas e mais dúvidas eu as tinha e sublimava para não te fragilizar. Todas inúteis, pois seus passos sempre foram firmes e decididos como os que te trouxeram do palco até mim, ao término da sua colação de grau, para meus abraços temperados a carinho e 'a sutil sensação de missão cumprida e filha crescida! Nem a chuva torrencial que caiu antes e durante a sua festa, lavou mais a cidade do que você lavou minha alma. Obrigada, querida! Começo agora, com todo amor, os preparativos para o seu casamento! Assim você me mata!

Com carinho,

Mamãe

OS FILHOS
Kahlil Gibran

(Do Livro "O Profeta")
Uma mulher que carregava o filho nos braços disse: "Fala-nos dos filhos."
E ele falou:

Vossos filhos não são vossos filhos.
São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.
Vêm através de vós, mas não de vós.
E embora vivam convosco, não vos pertencem.
Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos,
Porque eles têm seus próprios pensamentos.
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas;
Pois suas almas moram na mansão do amanhã,
Que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.
Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós,
Porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados.
Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas.
O arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda a sua força
Para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe.
Que vosso encurvamento na mão do arqueiro seja vossa alegria:
Pois assim como ele ama a flecha que voa,
Ama também o arco que permanece estável.